sábado, 11 de abril de 2020


11 DE ABRIL DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

RENASCIMENTO

Entre os séculos XV e XVI, a Europa viveu uma revolução cultural produzida por humanistas, artistas, cientistas e líderes de rara lucidez. O epicentro desse movimento foi Firenze, no coração da Toscana, terra de Leonardo, Botticelli e da família Medici, que, ao mesmo tempo em que se tornou uma das maiores fortunas do planeta, financiou a mudança cultural que fundou a modernidade. A Toscana foi severamente atingida pela peste do século XIV, a pior pandemia até os dias atuais. Com seu pico entre 1347 e 1351, dizimou um quarto da população global e algo entre 30 e 60% da população europeia, conforme a região; estamos falando de mais de 100 milhões de mortos. Estudiosos do Renascimento sabem que a peste foi uma de suas principais causas. Como pode o poder letal de uma doença promover a renovação da história?

A obra-prima de Giovanni Boccaccio (1313-1375), o Decamerão (1353), mostra as histórias picarescas que 10 jovens compartilharam para enlevar-se longe da cidade em sua quarentena de 10 dias (déka hémeros, em grego). Essa obra é sintoma da mudança que se construía desde a fundação das universidades (Bologna, 1088; Paris, 1150; Oxford, 1167; Salamanca, 1218; Coimbra, 1288), o crescimento das cidades e o florescimento de inteligências poéticas como as de Dante Alighieri (1295-1365) e Francesco Petrarca (1304-1374). A peste desmascarou as promessas fantasiosas da religião, pois pouco importava orar e sacrificar-se - todos morriam! - e abriu espaço para o ceticismo e o livre-pensar. Foi quando a moralidade anti-erótica imposta pela Igreja Católica foi questionada e iniciou-se a elaboração de novas sexualidades e atitudes, inspiradas pela imaginação de Afrodite, Dioniso, Hermes e demais deuses e autores pagãos. 

Durante e após a peste, muitos refugiaram-se em mosteiros desertificados, onde encontraram tesouros de manuscritos, que logo se tornaram talismãs cobiçados por almas inteligentes. Iniciava-se então novo ciclo de leituras e leitores, o qual tornou-se potência irresistível com a invenção da gráfica de tipos móveis, por Gutenberg, em 1450. O abalo ao domínio da fé prosperou com a redescoberta das letras e imagens da cultura clássica, e o consequente fenômeno de pensamento, liberdade, ousadia e criatividade. Depois daquela peste, a humanidade renasceu e mudou para melhor.

Temos hoje imensos poderes culturais e meios para fazer do mundo uma nova Firenze, pronto para florescer após a peste. Eis, agora, esta pandemia e a urgência da vida pondo em cheque as necropolíticas e seus agentes e armando o tabuleiro de nossa possível renascença no século XXI: mudaremos para melhor ou para pior? Tudo depende do vigor com que enfrentarmos os cúmplices do vírus, o insensato ignaro no poder, os charlatães da fé, as ideologias do egoísmo, pseudo-cientistas, homens ruins que agravam crise de difícil solução. Como renascer sem combater as tropas da morte?

Ora, juntemos as melhores energias e amizades. É com elas e com coragem, arte, ciência, amor e solidariedade que poderemos renascer logo mais, em uma nova era.

FRANCISCO MARSHALL

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