sábado, 11 de abril de 2020



11 DE ABRIL DE 2020
INFORME ESPECIAL

E rir, pode?

Sabe a última do coronavírus? Acaba de ser divulgado o número de mortos do dia. E as mais novas piadas e memes, que já devem estar chegando ao seu celular. O escritor americano Mark Twain cunhou a definição: "Humor = tragédia + tempo". Só que agora, somada a parcela "internet", todos correm de mãos dadas, em velocidade frenética. Instigado pela relação tão íntima entre dor e riso, me propus a refletir sobre o tema. Pedi ajuda a pessoas que vivem e pensam por ângulos diferentes, no Rio Grande do Sul e fora dele.

A Dra. Patt Schwab é um bom ponto de partida. Ela estabelece categorias diferentes para o humor. O "mórbido" é o primeiro a emergir em tempos de comoção e catástrofe. Identifica as vítimas e joga toda a carga, sem dó, sobre elas. Serve, de acordo com a pesquisadora, para delimitar a separação entre o eu e a tragédia e, assim, iniciar o processo de contato com a realidade. Os memes dos animadores ganeses de enterros, os mais vistos e compartilhados nos últimos dias, são um exemplo atual. Quem morre é o outro, mas consigo, só assim, falar sobre a morte.

O ator e empreendedor cultural Zé Victor Castiel concorda que o riso ajuda a digerir situações difíceis. Acrescenta uma característica ao momento atual:

- Em geral, o humor se constrói com as dificuldades do outro, mas agora não há o outro. Estamos no mesmo barco.

De certa forma, a ideia endossa a ênfase da morbidez nas piadas sobre o coronavírus: é preciso inventar um espaço distante do risco, até para compreendê-lo.

Para a psiquiatra e psicanalista gaúcha Idete Zimerman Bizzi, quando a experiência adversa excede a capacidade de assimilação mental de indivíduos ou grupos, o humor pode ser uma forma saudável de elaboração psicológica, "mantida a dignidade e o respeito humano", completa. Famoso no Brasil inteiro como Magro do Bonfa, André Damasceno é um crítico agudo do politicamente correto. Mesmo assim, ressalta a importância dos limites.

- Dá para brincar com vírus, mas temos que respeitar o sofrimento de quem morreu. O riso é resultado de um desequilíbrio e uma tentativa de reequilíbrio - explica, erguendo uma ponte entre a dor e a comédia.

O corpo humano gosta da gargalhada. O endocrinologista Alex Cioffi trabalha na linha de frente do combate à covid-19 na emergência do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Procurado por mim, sintetizou uma série de estudos científicos e enumerou efeitos positivos do riso: exercita e relaxa os músculos, melhora a respiração, estimula a circulação, diminui os hormônios do estresse, aumenta as defesas do sistema imunológico, melhora a tolerância à dor e a auxilia a função mental.

Entre minhas pesquisas, li textos produzidos depois do 11 de Setembro. Muitos profetizavam a "morte definitiva do riso". Engano. Mesmo nos momentos mais agudos, os humanos usam a piada como defesa e auxiliar digestivo.

O humor comunitário, compartilhado com plateias ou multidões heterogêneas, vive agora uma crise. Mas os grupos de WhatsApp e as comunicações entre amigos e familiares fervilham com estímulos ao riso. É a dimensão necessária de uma certa hipocrisia social, na qual público e privado obedecem a lógicas não apenas diferentes, mas contraditórias. Seria, para muitos, um mecanismo legítimo, uma válvula de escape profilático em tempos de pandemia. Depois de conversar com tanta gente e muito ler, compreendi que não há culpa no riso, mas que ele tem lugar e hora para acontecer.

Navegando por arquivos pessoais em busca de respostas para o aparente dilema entre dor e gargalhada, deparei com a foto, tirada em 2006, de uma parede de Lisboa. Nela jazia, estampada em letras escuras sobre lajotas claras, uma frase do poeta João Patrício, de quem localizei escassas e imprecisas informações. Mas a frase estava lá, a unir o que nosso julgamento moral insiste em separar: "A comédia e a tragédia são alma do mesmo ser. A primeira faz-nos rir. A segunda, entristecer".

TULIO MILMAN

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