sábado, 18 de abril de 2020


18 DE ABRIL DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Daqui pra frente

Semana passada, fui surpreendida por uma contratura traiçoeira: começou levezinha, no pescoço, e logo se expandiu para as costas e um dos braços. Dor infernal, de acabar com o bom humor. Achei que um analgésico daria conta, mas não tinha nenhum em casa, então pedi socorro por WhatsApp a um vizinho mais prevenido que eu. Ele colocou a cartela no chão do elevador e apertou no botão do meu andar - não me entregou em mãos por motivos óbvios.

Mas o analgésico não foi suficiente. Já não conseguia me mexer, não havia posição para dormir, e pior, não conseguia mais escrever. Eu precisava de um fisioterapeuta pra ontem, e que fosse valente, já que seria impossível me ajudar a distância. Quis a divina providência que me recomendassem a Carol, uma vizinha não de prédio, mas de quarteirão, que se prontificou a me atender em casa. 

Chegou com máscara, luvas, álcool gel e logo perscrutou cada uma de minhas costelas e meus músculos. Eu estava com um nó cego dentro do corpo. Ela aliviou a situação, mas deu a real: eu não ficaria boa num piscar de olhos. Sugeriu um pelotão de medicamentos e ordenou: repouso absoluto. Eu não poderia nem mesmo chegar perto do computador. Pensei: ok, tenho alguns textos de reserva justamente para essas situações. E relaxei.

Até que chegou o dia de enviar esta coluna para a redação do jornal. Abri meu arquivo de textos inéditos: qual escolher? Comecei a lê-los e me dei conta de que nenhum servia. Todos estavam relacionados a situações presenciais, ruas da cidade, hábitos culturais, preocupações que destoariam do que estamos vivendo hoje. Percebi que não era apenas o meu corpo que não podia sair de casa: minhas reflexões anteriores ao coronavírus também não.

A danada da contratura foi provocada por uma manobra desajeitada durante um exercício e pela má postura ao digitar no teclado, mas não se pode descartar os efeitos emocionais da pandemia. O estresse de ter a rotina interrompida. A aflição por quem não tem condições de ficar em casa, ou que nem casa tem. O medo de perder amigos e parentes. A falta de um prazo para o fim desta ameaça. As consequências econômicas, que serão dramáticas. A ausência de uma liderança política que nos passe confiança. Sorte de quem consegue peitar a crise sem desenvolver uma taquicardia, sem depressão, sem insônia, sem as entranhas acusarem o golpe. Eu, que me considero calma, amiga íntima do Dalai Lama, não consegui evitar a somatização.

Só me resta festejar a inexistência de exame antidoping para colunistas. Estou escrevendo este texto ainda sentindo dores lombares e ingerindo alguns comprimidos, mas não tem outra saída: daqui pra frente, o assunto mudou. A vida do lado de fora das nossas janelas terá que ser repensada - e reescrita.

MARTHA MEDEIROS

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

09 de Novembro de 2024 MARTHA MEDEIROS Etarismo flexível Na época em que assistia shows inteiros em pé, na pista do estádio, como aconteceu ...

Postagens mais visitadas