sábado, 8 de agosto de 2020



08 DE AGOSTO DE 2020

J.J. CAMARGO

O CUMPRIMENTO DO DEVER

O culto a isso é um dos atributos da educação. E, como sempre, o exemplo é mais didático do que o discurso. Toda crítica avulsa devia ser precedida por uma prestação de contas. Ou construímos o direito de criticar, ou vestimos o silêncio - ele disfarçará melhor o real tamanho que temos.

O dever é a grande obrigação moral do ser humano, primeiro consigo mesmo e, em seguida, com os outros. O dever é a lei da vida. E ele é muito difícil de ser cumprido, por se achar em antagonismo com as seduções do interesse, do comodismo e da emoção. Mas o que melhor o define é a intolerância às justificativas para descumpri-lo. Não aparecem testemunhas de suas vitórias, mas estão sujeitas à reprimenda as suas derrotas.

Ainda que, como todos os sentimentos, tenha um componente intrínseco com fortes implicações genéticas, o culto ao dever é um dos atributos da educação e, portanto, deve ser ensinado. E nesta questão, como sempre, o exemplo é mais didático do que o discurso.

Na medida em que envelhecemos, surge espontaneamente a necessidade de inventariar o que fizemos. Quem dera isso trouxesse algum regozijo, que infelizmente será sempre menor do que pretendíamos. Mas identificaremos as fontes de sabedoria que nos ajudaram a ser como somos, e por elas nunca seremos suficientemente gratos.

Um dia, fazendo um resumo do meu tempo na Clínica Mayo, ficou claro que as maiores lições não estavam nos livros, nunca estiveram.

Rochester, Minnesota, uma pequena cidade do meio-oeste americano, permitia que o professor Spencer Payne, chefe da cirurgia torácica, morasse em um condomínio de 60 hectares, a três quilômetros. Lá, ele compartilhava espaço, cavalos, açudes e um pequeno bosque com um pneumologista, seu cunhado, e um engenheiro, cerca de uns 20 anos mais jovem, seu amigo muito querido.

Um dia, enquanto tocávamos uma agenda cirúrgica cheia, ele recebeu a trágica notícia de que esse amigo, apaixonado por canoagem, morrera afogado nas cabeceiras do Rio Mississipi, no norte do Estado. Como o corpo do amigo chegaria apenas no final da tarde, ele seguiu operando, num esforço visível. Terminada uma operação, se refugiava no vestiário de onde voltava ao chamado do interfone e recomeçava seu trabalho. Enquanto se lavava para a última operação, percebi, pela primeira vez, que ele era um homem velho, pelo menos para os meus padrões na época, e, compadecido com seu sofrimento macroscópico, me ofereci para substituí-lo. Ele agradeceu e me deu a maior lição gratuita de senso do dever:

- Obrigado, doutor, mas se eu cumprir toda a agenda deste dia, hoje à noite só vou lamentar a morte do meu amigo. Na medida em que o tempo, este cruel triturador da memória, vai empurrando para o horizonte longínquo a figura nunca substituída do nosso pai, nos socorremos da saudade, última guardiã a preservar viva a lembrança das lições que construíram o modelo do que poderíamos ter sido. Se não somos, algum dever negligenciamos.

Então, acessemos o túnel do tempo, retrocedamos 20 anos e vamos reencontrar meu velho pai, que está na UTI onde permaneceu por dois meses e meio, sobrevivendo a sepse peritoneal, embolia pulmonar e infarto do miocárdio. Está lúcido e, como sempre, otimista. Ao abraçar o Décio, meu irmão mais moço, seu parceiro na fazenda, perguntou de cara:

- E daí, meu filho, comprou a semente pra lavoura?

Meio indignado, eu perguntei:

- Mas pai, por favor, o que o senhor quer saber de lavoura?

Ele tinha a resposta pronta: - Ué, se o velho morrer, pelo menos deixou plantada!

Muita saudade é o único jeito de assegurar a eternidade desta lição.

P.s.: um abraço a todos os pais, esses modelos de afeto que carregamos pela vida e que morrerão conosco. Nem um dia antes.


J.J. CAMARGO

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