sábado, 24 de abril de 2021


17 DE ABRIL DE 2021
J.R. GUZZO

Como uma ditadura do terceiro mundo

O STF assume cada vez mais a cara, o corpo e a alma de uma dessas ditaduras africanas (a América Latina já está numa outra fase) nas quais um ato extremista puxa outro e os ditadores, nos seus arranques de despotismo, vão perdendo o contato com a realidade. Acontece o tempo todo: os ministros, colocados diante de uma decisão radical, tomam outra ainda mais radical. Aconteceu de novo.

Sem razão nenhuma, apenas usando a petição de um partido anão para satisfazer os seus desejos políticos, o ministro Luís Roberto Barroso impôs ao Senado uma humilhação espetacular: mandou o presidente da Casa abrir uma CPI que ele, no pleno uso dos seus direitos constitucionais, não queria abrir. Logo depois de ter feito a Câmara engolir a prisão ilegal de um deputado, o STF dobra a aposta, enfiando goela abaixo do Senado uma CPI sem pé nem cabeça.

A comissão, como se sabe, é para investigar a conduta do governo federal durante a pandemia de covid-19. Só a dele, é claro, e não as ações dos Estados e municípios - que receberam do mesmo STF, há mais de um ano, autonomia completa para gerir a epidemia.

Não saiu bem como queriam; na forma final, ficou aberta uma brecha para perguntas sobre a maciça roubalheira de verbas federais por parte das "autoridades locais", um escândalo em moto contínuo que já provocou mais de 70 investigações da Polícia Federal.

Mas o propósito de atacar o governo e, especialmente, a Presidência da República, permanece intacto: junto com a CPI, o STF deu curso a um prodigioso processo para julgar Jair Bolsonaro por "genocídio" - pelo que deu para entender, o presidente está sendo acusado de não fornecer água potável às "populações indígenas". Acredite se quiser.

Como tinha acontecido na Câmara, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, cedeu a mais uma intromissão do STF em questões internas do Congresso Nacional. Durante os últimos 63 dias, Pacheco vinha argumentando que não abria a CPI pedida pelo partido nanico porque o momento, no meio de uma tragédia absoluta, não era apropriado. Não aconteceu nada de novo até agora - mas o "momento", assim que Barroso falou, passou a ser ótimo. O ministro mandou, Pacheco obedeceu no ato; ao que parece, estão se acostumando a apanhar e gostar. É isso, hoje, o parlamento brasileiro.

O Supremo cometeu um suicídio moral ao anular todas as ações penais contra Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, inclusive a sua condenação em terceira e última instância por nove juízes diferentes. Suicidou-se outra vez, logo em seguida, ao julgar o juiz Sergio Moro "suspeito" de agir com parcialidade - com base em informações obtidas através de crime e cuja autenticidade está em dúvida.

Com os seus repetidos surtos na área política, o STF está operando, a cada dia que passa, como uma das ditaduras mais extravagantes e subdesenvolvidas que há por aí.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes - J.R. GUZZO



17 DE ABRIL DE 2021
MARCELO RECH

Democracia remendada

Na peça de ficção em que se converteu o orçamento federal de 2021, a queda de braço sobre o estouro fiscal das emendas parlamentares esconde uma distorção peculiar da democracia brasileira.

À primeira vista, a emenda carimbada por um deputado para construir em sua base um ginásio de esportes, por exemplo, é uma iniciativa salutar. Mas é preciso olhar mais fundo. Como qualquer verba pública, a obra deveria seguir critérios técnicos e republicanos de orçamentação, prioridade e execução. No mundo ideal, a obra seria avaliada, orçada e executada pelos governos municipal, estadual ou federal, ou em uma combinação dos três - sem apadrinhamentos ou submissão a interesses partidários e paroquiais.

Conceder funções executivas a parlamentares é parte do imbróglio em que o Brasil se meteu ao perder de vista a separação entre poderes. Nesta lambança, o STF legisla regularmente e até assume poder de polícia, o parlamento absorve funções de governo e o Executivo Federal invade o campo do Legislativo com medidas provisórias. No fim, os três poderes se acotovelam na disputa de espaço e na sobreposição de atribuições, enquanto os governantes locais e regionais que deveriam planejar e executar os orçamentos se veem compelidos a percorrer gabinetes em Brasília para passar o chapéu em busca de verbas. É uma aberração que mantém vivo e aceso o ciclo perverso do clientelismo político, na mesma toada da concessão de favores que vem desde o Brasil Colônia - apenas se deu a ela nova roupagem e aparência de normalidade.

Parlamentares, em tese, são eleitos para legislar; ou seja, para exercer a nobre missão de debater grandes temas, propor, aprovar ou rejeitar novas leis e o orçamento, além de fiscalizar seu cumprimento. Quando uma verba pública é aplicada diretamente por um deputado, ocorre uma dupla distorção. Além de apequenar o mandato, o privilégio torna desigual a disputa eleitoral contra possíveis futuros concorrentes que não têm o poder de escolher obras na sua base. Em suma, criam-se currais eleitorais e fecham-se portas para a renovação política.

Com a dieta de obras públicas, fruto de um Estado que prioriza a própria subsistência, é muito improvável que um deputado ou senador resista à tentação de afagar o eleitorado com projetos que deveriam ser propostos e tocados pelos Executivos. Da mesma forma, é demasiado esperar que o eleitor médio perceba que a relatoria de um projeto relevante pode ter mais impacto em sua vida do que a construção de um ginásio. Como não há força à vista para romper esse ciclo viciante, cabe pelo menos um reconhecimento à bancada federal gaúcha, que procura concentrar suas emendas em projetos comuns para o Estado, despersonalizando em grande medida uma deturpação que embaralha poderes, conspurca o parlamento e enfraquece governos.

MARCELO RECH

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