sábado, 24 de abril de 2021


17 DE ABRIL DE 2021
J.J. CAMARGO

PARA ONDE O CORAÇÃO NOS LEVA

O amor, infelizmente, não imuniza, mas o desamor é sempre mortal

O dano emocional desta peste na população geral ainda não foi completamente dimensionado. Sabemos com certeza documentada que muitas mortes evitáveis ocorreram por medo de procurar recursos médicos, ou, por suprema ironia, que morremos muitos da doença velha, mas não passamos nem perto da nova.

Por outro lado, a observação da Sociedade Brasileira de Patologia de que houve uma redução de cerca de 50% dos diagnósticos de câncer em 2020 terá desdobramentos a médio prazo porque, disso também se sabe, as fragilidades emocionais não desaceleram os cânceres.

O distanciamento social, indispensável para diminuir a circulação do vírus, também revelou seu efeito colateral nocivo ao dificultar a interação carinhosa entre os amados. A frustração e o tédio pelo confinamento, a interrupção da rotina, a alteração das atividades habituais de trabalho, a constância das notícias trágicas e a perda da liberdade de ir e vir tiveram e continuam tendo consequências funestas e estressantes na condição anímica da população.

Como os seres humanos são diferentes, nada se apressa mais em distingui-los do que a doença. E essa diversidade é ocasionalmente flagrada pelo relato de casos bizarros e muito frequentemente observada pelos médicos intensivistas, que convivem, por exemplo, com o drama da necessidade de intubação, já identificada pela população leiga como uma declarada ameaça de morte.

O Carlos Fernando vivia sozinho desde que se separou há 23 anos, tendo deixado três filhos adolescentes, assumindo, com uma naturalidade que chocava os amigos, que havia entre eles uma relação de nulidade afetiva bilateral.

Com sintomas da covid-19, procurou uma UPA, onde o diagnóstico foi confirmado. Comunicou ao trabalho que ia tirar uns dias de folga e aproveitaria para visitar uns parentes no Interior, e se refugiou num lar vazio de tudo. Depois de 16 dias exilado, mandou uma mensagem ao único irmão que morava em Santa Catarina, dizendo que precisava muito conversar com ele, alarmando-o com a instrução de que a chave da porta lateral estava embaixo do vaso no segundo degrau.

Quando o irmão chegou no fim daquela tarde, ele já não estava. Segundo o legista, a morte ocorrera havia menos de duas horas. Todos ficaram aliviados que, nestas circunstâncias, as cerimônias fúnebres estão proibidas.

No outro extremo, cheia de afeto e susto, chegou Mariângela, com sua bochecha roliça que a máscara mal continha. Igualmente contaminada, foi trazida ao hospital, com falta de ar, para uso imediato de oxigênio. Depois de uma melhora inicial, que chegou a acalmar a aflição do único filho, a reação inflamatória recrudesceu. Depois de um dia de tentativas frustradas de medidas menos invasivas, ficou evidente que estava em fadiga muscular e a intubação era indispensável. Seu médico, um intensivista dedicado e sensível, se apressou em comunicar-lhe, e quis saber se ela mesma preferia dar a notícia ao filho.

Quando ela disse que sim, alcançaram-lhe um celular. Médicos, enfermeiros, técnicos e fisioterapeutas colecionaram, neste ano de pandemia, muitas histórias emocionantes. Mariângela, com uma calma incomum, tratou de tranquilizar o filho, animando-o que ela ia ficar bem, e que ele se cuidasse. Encerradas as declarações de amor, o celular foi devolvido.

Um minuto depois, enquanto o material de intubação era preparado, um pedido surpreendente: "Eu preciso outra vez do seu telefone, doutor, porque faltou dizer uma coisa importante, ao meu filho!". Cercado de enorme expectativa do grupo assistente, o celular foi entregue: "Meu filho, uma coisa que esqueci: retire toda a roupa do varal, dobre e guarde no armário. Quando sair daqui, eu passo!".

Como se aprendeu nesses tempos medonhos, o amor, infelizmente, não imuniza, mas o desamor é sempre mortal. Naquele pedido corriqueiro, começava o diferencial de esperança dos que têm amor pra dar e amor pra receber, os quais, por insondáveis caminhos, vislumbram a inabalável certeza de que vão sobreviver, mesmo que todo imenso estoque de afeto esteja camuflado na simples promessa de uma roupa por passar.

J.J. CAMARGO



17 DE ABRIL DE 2021
ELIANE MARQUES

A INVENÇÃO DAS BRUXAS

Nos filmes, geralmente ela aparece na pele de uma invejosa e maléfica senhora velha e corcunda, comedora de criancinhas. Contudo, o adjetivo-substantivo bruxa, mais do que um pretenso insulto, compartilha com o tráfico transatlântico de gente, o extermínio de povos indígenas e a colonização uma história de expropriação material e subjetiva advinda das condições necessárias à formação e ao desenvolvimento do capitalismo. Sobre essa figura Silvia Federici lança novas perspectivas no livro Mulheres e Caça às Bruxas, partindo de Calibã e a Bruxa, sua obra anterior. A autora questiona por que xs principais destinatárixs da violência atual, incluída uma renovada caça às bruxas, são corpos que trouxeram a este mundo todas as pessoas e que respondem pelo trabalho de humanizar e manter a existência de outrxs.

Embora desde o século 4 os relatos monásticos dessem a conhecer demônios terrenos raptores das almas do seio da morte, os fatos constitutivos da caça às bruxas remontam aos séculos 17 e 18, quando se iniciou o julgamento das mulheres pela Igreja. Segundo o historiador Jean Delumeau, o sagrado não oficial foi considerado demoníaco, tudo o que se tinha por demoníaco foi tomado por herético e toda a heresia e o herético ficaram sob a guarda do demoníaco e suas agentes - as bruxas. Para os gregos, haíresis (heresia) se referia à escolha entre filosofias. O cristianismo transformou a escolha em crime-pecado.

Ocorrido em outras partes da Europa sob diferentes formas, o cercamento religioso foi concomitante à instituição da política que confinava as mulheres à subalternidade e ao cercamento de terras na Inglaterra, processo pelo qual a classe proprietária e os membros abastados da classe camponesa cercavam terras comuns, aboliam os direitos consuetudinários e desalojavam trabalhadores. Os efeitos das cercas atingiram com força mulheres mais velhas, viúvas sem alguém que pudesse ajudá-las. O ressentimento e a raiva das chamadas de invejosas advinham da injustiça da perda de suas posses para um vizinho, da presença diária de animais pastando nas terras antes comuns enquanto elas passavam fome.

Silvia Federici assinala que também podem se originar desse quadro as acusações de encantamentos a porcos, vacas, cavalos, entre outros, assim como as acusações de que o diabo ia ter com elas e lhes prometia nunca mais sofrerem privações. Contudo, as bruxas não padeciam de passividade diante da expropriação. Elas resistiam à exclusão social com ameaças, olhares de reprovação e maldições a quem se recusasse a ajudá-las. Algumas delas ofereciam presentinhos às crianças das cercanias na intenção de serem aceitas pelo grupo social.

Hoje, os ataques dirigidos às mães de uma juventude que rechaça a expropriação e combate para recuperar o que foi produzido por gerações de comunidades escravizadas, unido à política de encarceramento em massa, representam um dos aspectos da caça às bruxas. Sob o nome bruxa eram e continuam sendo penalizadas a investida contra a propriedade privada, a insubordinação social, a propagação de crenças heréticas e o desvio da norma sexual, na América e na África.

ELIANE MARQUES

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