sábado, 5 de fevereiro de 2022


05 DE FEVEREIRO DE 2022
BRUNA LOMBARDI

O SORRISO DE DEUS

Comecei o ano de uma forma inesperada. Enquanto todos festejavam e fogos explodiam em cores na noite, lágrimas comovidas caiam no meu rosto. Eu abraçava, depois de uma ausência forçada pela pandemia, minha querida tia Yolanda, de 93 anos, que mora em Punta del Este.

A cidade estava em festa e meu coração, dividido entre a alegria do reencontro e a apreensão de ver como ela estava abatida, não querendo mais se alimentar há várias semanas, mesmo me dizendo que comia bem. Estava muito magra e debilitada.

A gente costumava se encontrar duas vezes por ano e falava por telefone regularmente. Ela foi uma mulher muito independente, sempre trabalhou, ficou viúva, não teve filhos e fez dos livros e dos bichos sua melhor companhia. Durante esse período de isolamento, deixou de ver seus amigos e família e o acúmulo do tempo fez a solidão pesar.

Mesmo acostumada com sua reduzida rotina, seu estímulo foi esmorecendo, seu entusiasmo de sempre deu lugar a uma certa melancolia, que ela nunca deixou transparecer. Por ser muito espiritualizada e ter conquistado uma grande sabedoria com o passar dos anos, sabia conviver com a contemplação da beleza do céu, observar o movimento das nuvens e das ruas e entregar sua alma ao silêncio, que ela sempre considerou precioso.

Via encanto ao seu redor e gostava de seus momentos sozinha. Sempre me dizia para prestar atenção na felicidade das coisas pequenas.

Aprendi muito com as mulheres da minha família. Todas modernas, inteligentes, poliglotas e com um finíssimo senso de humor. Foi o que as salvou dos muitos desafios que enfrentaram. Perdas, guerras, mudanças, novos países, costumes, culturas, ideias. Vieram de uma família muito rica, perderam grandes fortunas, mas mantiveram a força, a garra, a capacidade de inventar e criar novas realidades com magia e coragem. Com elas aprendi a ser forte diante da adversidade e a transformar o que viesse no seu melhor.

Quando abracei o seu corpo magro e vi seu sorriso, compreendi que afeto, cuidado e acolhimento são medicinas infalíveis. Sua saúde estava ótima, e nossa batalha não era apenas com o desgaste do tempo, mas com uma série de sentimentos invisíveis, desses que subliminarmente corroem a alma.

Coisas físicas se combatem pontualmente, essas outras são difíceis até de se detectar. São sensações que se embrenham no espírito e nos consomem. Drenam a energia e criam novas raízes. Vão se alimentar de medos, pensamentos negativos, sombras e conseguem nos confundir a ponto de não ser mais possível ver a saída. Na dúvida, você se pergunta se existe saída.

Enquanto existir vida, existe esperança, é um dos ditados mais comuns e uma verdade universal. E foi assim, se sentindo muito amada, que aos poucos ela despertou sua vontade de viver.

Com sua voz fraca, me disse que a gente ia deixando um rastro de amor por onde passava. Aos poucos, vimos ela se recuperar de uma forma incrível.

Amor cura. Amor salva. Amor é a resposta. Milagres nos acompanham quando nos empenhamos e prestamos atenção neles. Milagres são o sorriso de Deus.

BRUNA LOMBARDI

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