sábado, 7 de maio de 2022


07 DE MAIO DE 2022
MARCELO RECH

A nossa guerra

Em um domingo recente, como costumo fazer cedo da manhã, saí para um passeio de moto por estradinhas de terra. No interior de Portão, na Grande Porto Alegre, percorria um trecho pastoril, habitado por ovelhas e cabeças de gado, quando, ao me aproximar de uma curva, avistei uma viatura da Brigada. Diante dela, jazia no acostamento o corpo de um homem esquálido, o rosto desfigurado por tiros. Havia sido executado ou desovado ali.

Nada demais, nenhum grande abalo que interrompesse o passeio. Nem notícia a morte foi. O corpo podia ter sido esquecido em uma estradinha da Ucrânia, mas foi apenas mais um dos 41 mil assassinatos anuais no Brasil, fruto provavelmente da guerra de facções que, em última análise, é fomentada por usuários que não veem o sangue escorrer quando cheiram uma carreira de cocaína.

Nossa guerra não desperta lá muito interesse, até porque é de baixa intensidade - uma morte aqui, um órfão ali, populações pobres tomadas como reféns por traficantes em áreas brutalizadas pela lei do silêncio. Nossa guerra não tem mísseis teleguiados, mas sobram munição e armamento pesado, como fuzis que poderiam estar nas mãos de combatentes nas estepes ucranianas. Os céus noturnos dos morros do Rio riscados por balas tracejantes não atraem correspondentes de guerra, embora façam com que brasileiros passem a noite acordados, de cabeça baixa, rezando para serem poupados no fogo cruzado.

Nossos refugiados não fogem em trens. Tomam aviões para os EUA e Europa, onde, além de esperança e oportunidades, encontram a paz de caminhar à noite sem medo e de dormir tranquilos enquanto a filha ainda está na balada. Segundo dados do Itamaraty, em 2020, já eram 4,2 milhões de brasileiros lá fora. Somente no primeiro trimestre de 2021, 120 mil brasileiros buscaram refúgio no Exterior. É um êxodo em conta-gotas.

Alguns querem nos fazer crer que, na nossa guerra, os culpados são as vítimas, porque a violência, as cercas elétricas e o medo na sinaleira à noite só acabarão quando não houver mais desigualdade social. É uma tese injusta e preconceituosa com os mais pobres, em sua gigantesca maioria honesta. Fosse essa a razão primordial, Índia, Indonésia e Egito, também populosos e desiguais, viveriam epidemias de criminalidade.

O Brasil desceu a ladeira da violência quando se esfarelaram as referências e os valores éticos, quando até bueiros e bustos em praça são furtados, quando covardes perdem a vergonha de abandonar mulheres grávidas, e crianças, como suas mães, se veem vítimas de abusos de toda ordem dentro de casa. O abismo se aprofunda com a corrupção, com a leniência com bandidos, com os presídios lotados, com a glamourização das drogas e a desimportância à educação. Índia, Egito e Indonésia são pobres, mas suas sociedades têm valores profundos, mais fortes que qualquer força policial. É disso que o Brasil também precisa.

MARCELO RECH

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