sábado, 4 de junho de 2022


04 DE JUNHO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

LISÍSTRATA

Era 411 a.C. quando o comediante Aristófanes (446-386 a.C.) apresentou sua Lisístrata, uma comédia engraçadíssima contendo crítica da guerra e das relações de gênero na Atenas clássica. Na trama, a protagonista Lisístrata congrega mulheres de Atenas e das polis que esta enfrentava na Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), Esparta e Corinto, para armarem greve sexual e assim pressionar seus homens a pôr fim à guerra. Esta comédia foi apresentada em janeiro daquele ano no festival das Leneias, festa dedicada a Dioniso, com forte acento feminino. É muito bom que essa obra encabece a lista de leituras obrigatórias para o vestibular 2023 da UFRGS, o que nos convida a pensar a atualidade de suas questões.

Lisísitrata é nome inventado por Aristófanes a partir da palavra lysis, que significa afrouxamento, dissolução ou liberação; segue-se strata, referindo stratós, exército. Assim, este nome significa Dissolve-exército, o que a torna muito bem vinda em nosso país, ameaçado pela ambição desmedida e iníqua de força pública paga com nossos impostos. Em Atenas não havia exército como o nosso (!), mas permanente mobilização guerreira da sociedade viril. A crítica do comediante atinge a guerra e o gênero masculino, pois o ofício bélico era o núcleo político de uma sociedade de varões guerreiros, parte de um mundo então interditado às mulheres. 

Dois anos antes da estreia de Lisísitrata, encerrava-se a catastrófica expedição à Sicilia (415-413 a.C.), que encaminhou a derrota de Atenas nessa guerra. Em 415 a.C., Eurípides (480-406 a.C.) apresentou sua tragédia As Troianas, pungente manifesto contra a guerra e a violência imposta às mulheres. Guerra, naquele contexto, não significava triunfo, mas seu oposto, ameaça letal à cidade e às pessoas, especialmente ao universo feminino. Em Atenas, artistas souberam formular com ousadia a crítica à guerra e às violências de gênero.

A constituição de Atenas como cidade de homens em armas levou a classicista holandesa Eva Keuls a cunhar o termo falocracia, em obra de 1993, The Reign of the Phallus ("O reino do falo"). As condições e relações de gênero em Atenas eram complexas, mas incluíam uma declarada causa chauvinista de homens contra mulheres, no coração da Idade do Ferro, que pôs fim ao matriarcado da Idade do Bronze. A presença de heroínas femininas na tragédia grega mostra um intrigante mundo de práticas e especulações sobre mulher, sociedade e política; pensemos na jovem Antígona a enfrentar o tirano Creonte na tragédia de Sófocles (497-406 a.C.), e o quanto ela e Lisístrata significam na representação do poder feminino e do benefício que este pode trazer para a cidade.

Em 1976, inspirado em Lisístrata, o dramaturgo Augusto Boal (1931-2009) escreveu Lisa, a Mulher Libertadora, para a qual seu amigo Chico Buarque compôs a linda canção As Mulheres de Atenas, que pinta quadro de sujeição da mulher, espelhamento do Brasil na polis grega; ele então declarou que era "obra masculina, mas não machista. (?) dedicada a todos os movimentos de liberação feminina e a todas as feministas (?), com seus exemplos de vida". Que elas nos libertem, sempre!

FRANCISCO MARSHALL

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