sábado, 2 de setembro de 2023

02/09/2023 - 09h00min
Martha Medeiros

Só quem pode me cancelar sou eu

Recomendo prestar mais atenção à nossa integridade do que na reação de seguidores desconhecidos. A maioria dos seguidores volta, porque a razão de seguir era mais forte do que o desdém temporário

Você tem o direito de discordar do que penso. Talvez tenha se decepcionado com algum texto do passado e nunca mais tenha restabelecido contato comigo nas redes sociais. Um dia me seguiu e outro dia escapuliu, não sem antes avisar (“deixando de te seguir”, o terrorismo básico). 

Enfim, você tem o meu respeito, mesmo que me odeie, pois o ódio é apenas um dos lados da moeda e estamos todos sujeitos a ele. Mas você não tem o poder de me cancelar. Ninguém cancela ninguém, é só um verbo da moda.

Se não foi comigo, foi com outra pessoa. Você discordou das posições de um humorista, de uma influencer, de um jornalista. Só que eles continuam existindo à sua e à nossa revelia, pois você e eu não temos o poder de aniquilar a carreira de ninguém, a não ser que a própria pessoa tenha colaborado muito para isso – sendo negligente, mentirosa, corrupta, sei lá. 

Uma opinião atravessada não é suficiente, e deixar de segui-la nas redes gera apenas uma falsa ilusão de fracasso. Realidade: a maioria dos seguidores volta, porque a razão de seguir era mais forte do que o desdém temporário.

Se em vez de algoz, você foi a vítima, acalme-se, portanto. Cancelam-se matrículas, encontros, reservas em hotéis. Cancelar uma pessoa – conhecida ou desconhecida – é um recurso sensacionalista e causa um pânico artificial. Tentativa de exercer um poder que, de fato, ninguém tem. 

Quando são inúmeros os raivosos, causa certo alvoroço, mas é só uma onda quebrando na areia, o oceano continua manso em sua fundura abissal. Só quem pode cancelar você é você mesmo. Só quem pode me cancelar sou eu.

O autoboicote, sim, é preocupante. Posso me abalar com uma ofensa. Deixar de dizer o que sinto. Não alimentar mais minhas amizades. Desconsiderar minha família. Terminar uma relação amorosa e me fechar para as próximas. Omitir minhas próprias opiniões. Perder a coragem de existir. Sair de cena, me trancafiar no quarto. É o mais parecido com um cancelamento, e mesmo assim, é uma vida que não saiu do ar em definitivo, apenas está gerenciando a própria dor e precisando de ajuda.

Só a morte nos cancela em definitivo. Cancelamento nas redes é uma ameaça com jeito de cartão amarelo, uma tentativa de contenção que ganhou uma relevância exagerada. 

Recomendo prestar mais atenção à nossa integridade do que na reação impulsiva de seguidores desconhecidos. Em tempo: não estou escrevendo em defesa própria, costumo ser muito bem tratada. Estou apenas analisando uma neura que se generalizou.

Que tal retornar ao ponto de partida, quando éramos seres humanos e não números e algoritmos? Ainda dá tempo de não se afogar em uma barafunda sem nexo ou profundidade. Cancelamento? Uma petulância a mais neste hospício digital.

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