sábado, 2 de setembro de 2023


02 DE SETEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Números quebrados

Há dois momentos em que festejamos os números quebrados: com o recém-nascido e com o morto.

É paradoxal que o início e o fim estejam entrelaçados em rara contagem.

Não há espera pelas idades completas e arredondadas. Você experimenta intensamente um dia de cada vez, numa matemática distinta daquela que realiza consigo.

No primeiro caso, você comemora a vida que acabou de surgir. No segundo caso, homenageia a vida que acabou de partir. No primeiro caso, assinala a esperança. No segundo caso, sublinha a saudade. No primeiro caso, seus olhos estão voltados para o futuro. No segundo caso, para o passado.

São celebrações opostas em que se pratica idêntico exercício de fixação dos pequenos acontecimentos.

Pois não se quer perder nada dos dois testemunhos, demonstrando-se uma atenção extrema tanto no nascer quanto no pesar. Ritualiza-se a passagem das 24 horas da folhinha do calendário.

Com o bebê, é exaltada a sua evolução, lembrando-se a primeira semana, os primeiros 30 dias, os primeiros meses. E não se dá nenhum desconto, numa agenda precisa e fidedigna. Você é capaz de registrar exatamente passo a passo da sua formação com meses e dias, sem esquecer um amanhecer, sem generalizar, antes de o círculo etário se fechar.

Já com o ente querido que faleceu, executa-se igualmente uma contagem rigorosa, só que da distância, a partir da missa ou do culto. Começa com o sétimo dia e se estende aos meses subsequentes de desamparo. Você aniversaria o sofrimento sem esquecer um anoitecer, antes da virada completa da idade.

Os números quebrados indicam mudanças decisivas e cruciais, seja pelo acolhimento, seja pela despedida. Existiu uma transformação da sua personalidade. Ou passou a exercer uma nova função afetiva, ou deixou de tê-la. Nunca voltará a ser quem era.

Um traço em comum é que está escrevendo a memória por alguém, pois ambos - bebê e falecido - não têm como formalizar suas datas comemorativas. Assim como você não pode controlar a felicidade - cada instante é perpetuado -, tampouco pode controlar a dor - cada lacuna é eternizada.

O que me põe a concluir que a tristeza entra pela mesma porta da alegria. Apresentamos a mesma conservação de miudezas e detalhes diante de uma e de outra. Ou aprendendo a conviver com uma alma, ou aprendendo a sentir a sua falta.

A alma é o como. Como a pessoa particularizava atributos extensivos a todo mundo, como fazia de maneira única aquilo que era padronizado. Como gargalhava. Como dançava. Como conversava. Como caminhava. Como corria. Como transbordava.

Você guarda essas singularidades para jamais esquecer que o tempo não é feito pelos relógios, ele segue unicamente os ponteiros da sua emoção.

CARPINEJAR

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