sábado, 11 de julho de 2020



11 DE JULHO DE 2020
BEM-ESTAR

A TRISTEZA FAVORECE O VÍRUS

ENTREVISTA: Nilton Bonder, Rabino e escritor, autor de "Cabala e a Arte de Preservação da Alegria"

Muita gente confunde alegria com felicidade. Como diferenciá-las?

Trato no livro a alegria como uma das três partes de Eros - o impulso de vida -, juntamente com a ambição e a sexualidade. A ausência de um desses pilares compromete a qualidade da vida. Os três não são sentimentos, mas disposições. Portanto, você não está nunca alegre, você é alegre ou não é, ou soube preservar sua alegria inata ou não soube. A ideia de que a alegria possa ser um estado pressupõe que seja a reação a algo, quando ela é uma essência, um humor. A felicidade, por sua vez, é justamente o contrário: um estado de contentamento. A felicidade depende de interações com a vida, enquanto a alegria independe. Ela é um ânimo, um desejo e uma curiosidade que nascem do âmago do ser vivo.

Para o senhor, a alegria não pode ser fotografada, mas filmada, porque não é o resultado, mas o processo. É isso o que caracteriza, por exemplo, as pessoas que se consideram felizes no trabalho?

Essa cinética da alegria resulta do fato de que ela é infantil, ela salta de interesses constantemente. A tentativa de se apegar a uma alegria que brotou é o início da perda da capacidade de preservá-la. A alegria é momentânea e ela deve estar pronta para buscar uma novidade ou uma nova experiência. Desapegar-se do lugar bom com fé de que existem outros lugares bons é a natureza da alegria. Fotografá-la é tentar percebê-la estática numa posição. Uma criança como modelo alegre não para quieta. Ela larga o brinquedo que antes deslumbrava e logo vai em busca de algo novo. O adulto acha que ela se entediou, mas ela na verdade está neste "filme dinâmico" atrás da alegria, desejo profundo de sentir e vivenciar emoções.

O senhor diz que o ser humano nasce alegre e que alegria não tem causa externa, mas interna. Mas há pessoas que não são alegres, não? O que aconteceu com elas?

Todos nascem alegres. Uma criança que nasce com insuficiências de saúde luta para ficar por aqui. Seu desejo pela vida é a alegria. Por isso o livro não é sobre os alegres e os não alegres, mas entre os que souberam preservar sua alegria inata e os que não conseguem. E isso acontece no processo de formação, quando muitas das continências e dos aprendizados da civilidade estabelecem, ao tentar ensinar sobre o certo e o errado, também o bom e o ruim, o alegre e o triste. Quando conhecemos o conceito de triste, tornamos a alegria o seu contrário. A alegria até então não tinha antônimo. Uma criança ri alegre e chora alegre. Quando ri, há alegria por acolher prazer e sucesso; quando chora, há alegria por acolher limite e derrotas. Ambas experiências são igualmente ricas e potentes do ponto de vista das emoções e das vivências. As pessoas que entristeceram tentaram controlar ou manipular a alegria. Não souberam preservá-la.

No fim de 2019, em entrevista a ZH, o senhor disse que a ampliação da vida (tanto pela longevidade quanto pelo "monte de cacarecos" que ficamos olhando) provocou uma grande angústia existencial. O quanto o coronavírus veio para bagunçar ainda mais o coreto ou por ordem na casa?

O mundo materialista e capitalista em que vivemos equiparou a alegria ao consumo e ao sucesso. Assim, a epidemia do coronavírus que, além da ameaça à saúde, é um revés às liberdades, às economias e aos projetos, parece um cenário perfeito para a tristeza. Por isso as pessoas acorrem aos shoppings. Elas não estão indo comprar itens de primeira necessidade, estão indo comprar alegrias. Mas a alegria não está nas coisas ou nos resultados, a alegria está nas experiências. Sob este prisma, 2020 é profundamente rico nas vivências internas que estamos conhecendo, nas oportunidades de sentir empatia e novas emoções. E esta será uma prova à nossa civilização e espécie. Se voltarmos a um normal ainda mais sedentos por comprar e consumir alegrias, sairemos mais insatisfeitos e maior será a quantidade de quinquilharia a poluir o mundo. Há uma profunda conexão entre sustentabilidade e alegria. Colocar ordem na casa exige um resgate da verdadeira alegria. Esta não consome, mas se deixa consumir; seu foco não é o controle, mas a interação.

Como, em um período como o da pandemia, preservar a alegria?

Como disse, a alegria independe de fatores externos. Eles demandam atenção, cuidado e proatividade, mas não precisam da tristeza. Muito pelo contrário, a tristeza é uma apatia e uma procrastinação que é muito perigosa em tempos de zelo e aplicação. Tristeza pode funcionar a favor do vírus.

Neste contexto, os alegres são bem-vindos ou podem ser encarados como alienados?

Esta alegria superficial, de acorrer a espaços inseguros ou ir a festas nitidamente interditadas, está mais para o "bobo alegre", sinônimo de idiotice. Mas da maneira como estou definindo a alegria, ela é item essencial junto com a máscara. Não é o sorriso falso, uma máscara debaixo de outra, mas a capacidade emocional de interagir profundamente com a vida como momentos de crise e perigo demandam.

Como o senhor resumiria para uma criança os quatro tipos de alegria - física, emocional, intelectual e espiritual?

Eu resumiria não para uma criança, porque ela já sabe, mas para a criança já em formação ou para o adulto. No plano físico, reinicie a vida a cada dia; no emocional, fique desperto e não esperto; no intelectual, seja genuíno e não se troque por olhares falsos das expectativas suas e dos outros; e no espiritual, nunca perca a graça que é fazer coisas gratuitamente muito grato.

Há horas em que é importante e salutar manifestar a tristeza, certo? Como encontrar o equilíbrio? Como não deixar a tristeza dominar?

A alegria é sempre positiva e a tristeza, sempre negativa. Mas há momentos onde o sentimento alegre está em viver uma emoção difícil ou com características de tristeza, como em perdas ou frustrações. O alegre, ele apenas vive qualquer emoção plenamente, e o triste se esquiva de vivê-las. Não é um conceito simples e é bastante contraintuitivo. Leia o livro!

Ao observar o título do novo livro do rabino Nilton Bonder, um porto-alegrense de 62 anos radicado há muito tempo no Rio, o psicanalista Abrão Slavutzky expressou a surpresa que pode ser comum a outros leitores. "No ano de 2020, uma obra sobre a preservação da alegria choca-se com o peso da tristeza", afirmou o médico e escritor em sua resenha sobre Cabala e a Arte de Preservação da Alegria: Preservando o Gosto, a Sinceridade, a Autenticidade e a Graça, um lançamento da editora Rocco (leia o texto completo na página 6).

Sendo assim, de cara o livro - gestado antes e concluído durante a pandemia - já alcança um de seus objetivos: provocar reflexão. No contexto do coronavírus, a alegria é possível?

- Da maneira como estou definindo a alegria, ela é item essencial, junto com a máscara - responde Nilton Bonder, em entrevista por e-mail (leia, ao lado, a íntegra). - Não é o sorriso falso, uma máscara debaixo de outra, mas a capacidade emocional de interagir profundamente com a vida como momentos de crise e perigo demandam..

Com orelha assinada pelo humorista Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta, o livro é o terceiro da série Reflexos e Refrações, em que Bonder une a Cabala - ensinamentos presentes no judaísmo - a questões cotidianas (os anteriores foram Cabala e a Arte de Manutenção da Carroça: Lidando com a Lama, o Buraco, o Revés e a Escassez e Cabala e a Arte do Tratamento da Cura: Tratando a Dor, o Sofrimento, a Solidão e o Desespero). No volume atual, o rabino lança mão de parábolas, contos e vivências pessoais para falar, por exemplo, sobre como podemos sentir alegria em meio ao luto.

A alegria, nas palavras do rabino, não é um estado ou uma condição, "e sim o próprio sopro da vida" - um dom que nasce com cada um, mas que algumas pessoas não souberam preservar. "Você é alegre ou não é", diz Bonder.

Um símbolo gaúcho de pessoa alegre, a jornalista Tânia Carvalho, 77 anos, concorda:

- Tem quem olhe para frente, outro, para trás. Tem quem se delicie com um laguinho no meio do campo, outro que ache bobo.

Tânia diz que seu trabalho sempre foi "passar um alto astral" ao público. Entende que a alegria facilita tudo na vida. Ultimamente, ela admite que tem adotado mais o silêncio, refugiando-se na leitura de dois a três livros por semana, como um jeito de se apaziguar "nessa loucura toda".

- As pessoas estão muito tristes. É preciso contaminá-las com a alegria. Se você não consegue ser alegre, que pelo menos se cerque de pessoas assim. Gente triste que procura gente triste não dá! - vaticina. - Vamos ser mais otimistas, ter esperança no futuro, exercitar um pouquinho de bom humor, demonstrar um pouquinho de alegria por estar vivo, né?!

u "temos a doce ilusão de ficar só sentindo a emoção boa"

Sobrevivência tem sido uma palavra-chave neste momento que alguns encaram como um apocalipse lento e silencioso. O "clima de fim do mundo", como diz a instrutora de yoga Cintia Warmling, 29 anos, parece nos obrigar a ver as coisas apenas em preto e branco. Ela contesta:

- Estamos tendo de encarar que não existe felicidade total nem tristeza total. Estamos tendo de equilibrar, mas isso também não significa ficar nos 50% para cada lado. É uma oscilação.

A pandemia mudou bastante os planos de Cintia para 2020. O local onde daria aulas de yoga foi fechado. Ela chegou a ingressar em uma iniciativa via Instagram, mas percebeu que a exposição não lhe fazia bem ("Fico nervosa") e deu uma parada em junho.

- Este é um dos ensinamentos da pandemia: a pausa pode ser um pouco maior do que os cinco minutos para o café. Temos de aprender a parar. Na yoga, no momento do relaxamento final, há uma posição chamada savasana, que é a postura do cadáver. Sempre notei a dificuldade das pessoas em completar a savasana, porque as pessoas não param! É hora de uma reconexão literal com o corpo, voltar a entender que somos mortais. No oposto, estão os que seguem achando que são imortais, os que negam os riscos e lotam as calçadas dos bares, as pessoas que não conseguem parar.

O que Cintia diz conversa com o que pensa o escritor e professor de Literatura Jeferson Tenório, autor do romance O Avesso da Pele (Companhia das Letras), que está sendo lançado (leia resenha na página 12 do caderno DOC). Para ele, a pandemia mostrou o quanto somos frágeis e nos iludimos.

- Queremos controlar tudo. Até o que não podemos. Acreditamos em saídas mágicas. O cerceamento da liberdade é uma violência. No entanto, não estamos presos. Estamos nos salvando. E sorte daqueles que podem se salvar. É preciso ressignificar a casa. Reconhecer nela os espaços de afetos perdidos.

Conforme Tenório, sentir-se triste é inevitável e necessário.

- E talvez, por isso, a felicidade consista, em última análise, em termos a habilidade de administrar a tristeza. A alegria é minimalista, por isso exige cuidado e atenção com o presente. É o futuro que nos desabriga. Domar nossas expectativas é o que se pode fazer pela felicidade. Olhar para futuro com o eterno pensamento de "quando isso acabar" nos impede de viver o que precisa ser vivido.

Controle - ou a fantasia do controle - e expectativas são obstáculos que nós mesmos colocamos à frente, segundo a psicóloga Mara Lins, diretora do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi).

As emoções, diz Mara, são como uma forma de comunicação do nosso corpo com o que está acontecendo, dentro e fora de nós. Cada emoção tem um impulso importante. A vergonha, por exemplo, faz a gente se fechar. O medo, se proteger: tem quem lute, quem fuja, quem congele... O nojo faz a gente rechaçar, a raiva, atacar. A culpa ajuda a reparar algo que deu errado. A tristeza convida a se retrair, um momento de parar e avaliar a vida. E a alegria, "prima da felicidade", tem a função de aproximar e é a que mais traz bem-estar, inclusive biologicamente.

- Vale recapitular - sugere a psicóloga: - Quantas emoções, entre aspas, ruins de sentir, né e só uma, com os seus derivados, boa, né? Eis a grande questão que nos atrapalha enquanto seres humanos pensantes: temos a doce ilusão de ficar só sentindo a emoção boa, a alegria, e isso é impossível.

A vida, reforça Mara, é diferente daquela imagem que a cultura e a sociedade tentam fazer colar. Aquela pressão de que temos de ser ou estar felizes o tempo todo.

- Sou terapeuta de família e, por vezes, ouço pais dizendo: "Eu quero que meu filho seja feliz". Claro que eles estão falando de bem-estar e de amor, mas chega a me dar um frio na barriga. A gente está passando uma ideia errada. O filho vai ficar com uma expectativa e isso pode não acontecer, porque não somos felizes o tempo todo. Ensinam que a tristeza deve ser evitada, como se coisas ruins não fizessem parte da vida.

É uma imagem falsa da vida, afirma Mara, e isso gera confusão. Expectativas mais realistas podem contribuir para a conquista de um senso de felicidade.

- Tem um conto budista que diz mais ou menos assim: "Se você tem cabras, você vai ter problema de cabras. Se você tem trabalho, vai ter problemas de trabalho. Se você estuda, vai ter problemas de estudo. Se você está em um relacionamento conjugal, vai ter problemas de relacionamento conjugal. Se você é pai, vai ter problemas de pai. Se você é filho, vai ter problemas de filhos". Temos problemas. Viver é a arte de resolver problemas. É assim. Não existe nada perfeito. Somos imperfeitos. 

TICIANO OSÓRIO

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