sábado, 4 de julho de 2020


04 DE JULHO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

A morte e o filósofo


Na última quarta-feira, a artista Maria Tomaselli e um punhado de amigos e parentes próximos demos adeus à parte corpórea do filósofo e professor Carlos Roberto Cirne-Lima. Diante da estátua de uma pranteadora, no Cemitério da Santa Casa, o frio do inverno e as angústias atuais calaram-se para ampararmos a amiga e despedirmo-nos de uma personalidade grandiosa, que partiu aos 89 anos, após enfrentar penosa e imerecida enfermidade. Pode-se parafrasear para esse jazigo a lápide que Willibald Pirkheimer escreveu para seu amigo, o artista Albrecht Dürer (1471-1528): "O que quer que dele houvesse de mortal, aqui jaz".

A parte imortal foi a luz do pensamento e a grandiosidade humana que o filósofo emanou em sua pródiga vida, a inteligência compartilhada em lições e escritos admiráveis, o brilho nos olhos de quem amava as nobres ideias e as examinava como as verdadeiras entidades com que devemos conviver, o amor de quem compartilhava com encanto e amizade generosa. É isto a filosofia, o amor ao conhecimento, e é isto que reluz no momento melancólico do ocaso e sobrevive à poeira dos corpos e dos tempos.

No diálogo Fédon, Platão romantiza os últimos momentos de Sócrates, que então encara com serenidade o destino que levava aos prantos seus amigos atenienses, a morte iminente. O Sócrates ali descrito acreditava na imortalidade da alma e que o filósofo, que ornou sua alma "com o que é propriamente seu (?), com a temperança, a justiça, a coragem, a liberdade e a verdade", avançará com confiança e coragem no caminho do Hades. Afinal, "quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e em estar morto!", como traduziu José Cavalcante de Souza, helenista admirável, mestre dos mestres, recentemente finado. Esse diálogo, uma das mais belas obras de Platão, é legado da filosofia diante das fronteiras da condição humana.

Conquanto tenha sido admirável leitor de Platão e da literatura grega nos seus textos originais, Cirne-Lima defendia tese mais ousada para o destino após a morte. O mestre via o cosmos como unidade de toda a matéria e, nesta, um ciclo eterno, em que as partes alimentam a totalidade. Desse modo, ao morrermos, nossos vestígios integram-se ao universo; eis nossa imortalidade. Essa realidade dos corpos não invalida a nobreza da imortalidade cultural, que nos faz perpetuar as ideias e os sentimentos elevados, da filosofia, da ciência, da arte e do amor, como a parte iluminadora da condição humana, de que tanto precisamos. O filósofo é núncio dessa luz máxima, e assim enfrenta vida e morte como partes do mesmo ciclo, sem ilusões ou narcisismo vão.

Entre sofrimentos e prazeres, fainas e encantos, agarramo-nos aos fios da vida e cercamos a morte com mitos, ritos, temores e mistérios. Ei-la hoje, como nunca, à espreita, e eis um grande filósofo, que ultrapassa vida e morte e deixa lição imperecível, o amor ao conhecimento semeado no coração dos seus. Obrigado, Carlos.

Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS - FRANCISCO MARSHALL

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