sábado, 11 de julho de 2020



11 DE JULHO DE 2020
MÔNICA SALGADO

Amar o que não gosta

A coisa mais difícil é amar o que a gente não gosta. Porque assim: a gente ama uma pessoa, mas a gente não ama TUDO numa pessoa. Mesmo que a pessoa em questão seja pai, mãe, irmã, marido, filho... pera aí: filho? Mas e o tal amor incondicional mágico da maternidade, cantado em verso e prosa há séculos? Bem, digamos que todo amor - inclusive esse - é construção. E ele pode se construir imenso, cheio de potência, maior até que o amor a si mesmo. No entanto, 100% puro, desinteressado, não condicionado a nada - nem reciprocidade? Duvido.

Nascemos bicho, puro instinto. E então vamos nos humanizando. A partir disso, surgem necessidade de atenção, vontade de se destacar, urgência em satisfazer nossas necessidades, competição por afeto. Raiva, insegurança e frustração quando esses intentos não são atingidos. Toda sorte de afetos desagradáveis humanos - basta observar o comportamento de um bebê.

Daí que a mágica acontece justamente quando a gente consegue amar o todo - ou amar o que a gente gosta e tolerar o que a gente não gosta. Desde que a primeira coluna seja a maior. Aí reside a beleza do amor e do autoamor. Mas como é difícil, senhoras e senhores.

Claro que, quando se trata dos nossos queridos, temos uma tolerância maior ao que a gente não gosta. Você corta um colega da sua vida porque ele agiu assim e assado, mas não corta o filho, o marido. A corda do perdão pode ser beeem elástica, não?

Meu filho tem só nove anos, mas já o chamamos de "professor de Deus". Ele "sabe" absolutamente tudo de todas as coisas. Há quem diga que a culpa é dos astros - ele é de Sagitário, célebre sabe-tudo do Zodíaco. Outros alegam que o fato de ele ser filho único não ajuda em nada, o que tendo a concordar. Com ele é assim: você explica, você acessa o Google, você cita Einstein, você recorre à ajuda de uma terceira pessoa para confirmar o que está dizendo... em vão. Ele se fecha na sua convicção, alheio a fatos e argumentos. Também é capaz de dizer, com sorrisinho no canto da boca e tudo, que superjoga tênis depois de ter feito uma aula experimental. E se julga hábil baterista após desistir das aulas na terceira sessão. Autoconfiança é coisa boa, porém autoconfiança demais (o que dirá autoconfiança não embasada em algo concreto...) vira arrogância rapidinho. E cegueira, e ilusão.

Sou o oposto disso - e obviamente isso também é um problema per se. Digamos que eu tenha certeza de uma coisa. Se você me perguntar três vezes se eu tenho certeza, na terceira já estarei totalmente descrente da minha própria certeza. Não tenho culhões pra dizer que sei tocar bateria mesmo depois de dois anos de aula e, se alguém questionar se jogo tênis, só digo "ah, eu brinco", ainda que troque bola desde os meus 18 anos. Sou bastante influenciável e acho que não passei na fila da autoconfiança - síndrome da impostora é comigo mesma. E como a gente só consegue enxergar o mundo pelas nossas lentes e toda crítica é uma confissão... imaginem como me sinto (irritada, indignada, frustrada) a cada episódio do parágrafo acima. Sim, meu menino tem mil qualidades. É o ser que mais amo na face da terra. Mas como é difícil a gente amar o que a gente não gosta! Ou o que a gente não é.

Meu marido é a pessoa mais correta, honesta e trabalhadeira que se pode imaginar. Porém... ô bichinho rabugento. É o cara do copo meio vazio, meu ranzinza favorito. Eu voo; ele me aterrissa. Eu brinco; ele bronca. Eu festa; ele sofá. Eu terapia; ele silêncio. Eu exposição; ele resguardo. Eu gasto; ele poupa. Eu sonho; ele vida real. Estamos juntos há mais de 20 anos e, cada vez que um vulnerabiliza, as diferenças gritam a um nível quase ensurdecedor. Opostos complementares pode ser bom, mas como é difícil a gente amar o que a gente não gosta! Ou o que a gente não é.

A vida é cheia disso. Um eterno exercício de amar o que não é espelho. De amar o real, e não o idealizado. De amar também o feio, o diferente, o difícil. De amar o todo, e não as partes. Nos outros e em nós. Se não amar, aceitar. Faz seu drama, seu número de vítima, manda um "oh, céus, oh, vida" e siga em frente. É difícil, mas não impossível, amar o que a gente não gosta.

MÔNICA SALGADO

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