sábado, 10 de outubro de 2020


10 DE OUTUBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

MÉTIS 

Muitos séculos antes de Howard Gardner, o autor da teoria das inteligências múltiplas, os gregos perceberam diversos tipos de inteligências e suas funções, deram-lhes nomes e especularam sobre suas sedes no corpo humano. Viam-se, então, animados por um sopro vital, a psyché, capazes de colecionar e ordenar com o uso do logos, dotados de uma fronte pensante, onde está o phrén, que prefigura nossa estrutura nevrálgica; a mente conta com uma parte abstrata, o nous, e outra que pondera, a gnome, capaz de produzir sabedoria, sophia, temperança, sophrosyne, e a capacidade de pensar com prudência, a phronésis. A essas oito palavras, acrescenta-se a valiosa ideia de métis, a inteligência astuciosa, de Odisseu e daqueles capazes de pensar as possibilidades que podem abrir o futuro e seus caminhos.

Métis é também o nome de uma divindade, filha do Oceano e de Tétis (não confundir com a mãe de Aquiles, de mesmo nome). Na magistral tradução da Teogonia de Hesíodo (séc. VII a.C.), por Jaa Torrano, o nome Métis é vertido pelo que significa: Astúcia (v. 886), no episódio que narra como Zeus, após conquistar a soberania, deu início a cópulas divinas; a primeira delas foi com Astúcia. Alertado por Terra (Gaia) e Céu (Urano) de que dessas bodas nasceria filho que o desafiaria, Zeus engole Astúcia, já prenhe. A cria nasce, então, da cabeça de Zeus; é Palas Atena, donzela armada e que presidirá a inteligência estratégica, as tramas de tecelagens elaboradas, músicas com sopros cheios de pensamento, a mente arguta apta para o triunfo, tutora de Odisseu, o herói astuto.

Em seu grau máximo, a métis permite triunfar sobre força muito superior, dissimulando-se e colhendo o momento estratégico (kairós) para superar o oponente e salvar sua vida e de seus companheiros, ganhando glória. Além da trama do Cavalo de Troia, a métis aparece no desafio máximo da Odisseia, narrado no Canto IX, quando o herói é tornado cativo na caverna do monstro que recusa o sagrado dom da hospitalidade e devora carne crua, animal e humana, o ciclope Polifemo. Ao dizer que "meu nome é Ninguém" (Oútis emoí g?ónoma, IX, 360), o astuto herói prepara a tramoia com que deixará o bestial oponente sem socorro, facilitando-lhe o triunfo e a fuga.

O nome métis aparece também no nome de Prometeu ("o que sabe antes"), e no de seu irmão tolo, Epimeteu ("o que sabe depois"), o qual, nas passagens mais ginecofóbicas da literatura grega, recebeu dos deuses o presente ambíguo, cheio de dotes e males, primeira mulher, Pandora. Descontada a abominável hostilidade à mulher, o poema mostra como aqueles que não têm astúcia alguma confundem um bem com a fonte dos males. Note-se que mesmo o muito estúpido Epimeteu, que só depois se deu conta, ainda é mais sábio que 30% dos brasileiros.

Sabemos das tortas vias que nos trouxeram a esta caverna, onde um ser pior que Polifemo devora milhares de vidas, a flora, a fauna, o tempo, a economia, a moral e até a esperança. Ora nosso nome é Ninguém, mas haverá o momento para desabar esse ser nefando e apontarmos a proa, novamente, para Ítaca.

FRANCISCO MARSHALL

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

14 de Setembro de 2024 MARTHA Mar e sombra Entre tantos títulos, cito dois: o magnífico Misericórdia, da portuguesa Lídia Jorge, e Nós, da b...

Postagens mais visitadas