sábado, 2 de julho de 2022


02 DE JULHO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

Um dia, Aspásia de Mileto foi para Atenas. Com 20 e poucos anos, ela estava no esplendor de sua beleza e sabedoria, e Atenas, igualmente, mas muito rica. Era uma mulher em sociedade de muitos varões guerreiros, uns brutos, outros sensíveis, nenhum capaz de intimidá-la, como ninguém conteve Safo de Lesbos, 200 anos antes, como ninguém deterá as mulheres, 2,5 mil anos após. O que a saga de Aspásia diz para os que pensam história e sociedade, mulheres e poder, ontem e hoje?

Aspásia (470-após 428 a.C.) sabia que enfrentaria duros desafios, mas embarcou no navio e desembarcou para arrolar-se como estrangeira naquela cidade amiga. Do porto do Pireu, viu o cume ainda devastado da Acrópole, onde logo se ergueria, com sua ajuda, o templo de Palas Atena, deusa fêmea, senhora das estratégias, tecelã e astuta. Ao marulho do mar somavam-se murmúrios reais e imagináveis de uma cidade tagarela, que falava de tudo, e um dia muito falaria de Aspásia, de seu sagrado poder. Ela era também do mundo de Afrodite, e sua beleza distribuía-se com dons de Eros. Onde todos iam e vão aprender, ela foi ensinar, e montou sua escola, para mulheres. 

Fez cativos muitos homens, inclusive aquele mestre da filosofia que dizia, com falsa humildade, nada saber, mas que soube reconhecer que o pouco que sabia aprendeu de uma mulher; esta mesma, natural de Didima (templo de Apolo em Mileto), camuflada como Diotima, no diálogo sobre o amor, Banquete. Um comediante fez dela, em Os Acarnianos, a causa da guerra entre Esparta e Atenas, equiparando-a a Helena, em tramas de sexo e poder. O maior líder da cidade corria atrás de seu beijo, na ágora ou em sua casa, e no leito que repartiram, onde geraram filho. Seus conselhos eram admirados e de seus cílios partia olhar brilhante, que até hoje ilumina.

Que mulher Aspásia poderia ser em Atenas? Estrangeira (meteca), jamais seria uma cidadã, polítides, a quem se reservava condição de abelha, mélissa, cativa de deveres, nem foi escrava, doula, sem a posse de seu corpo. Talvez concubina, pallaké, mas seus dons eram mais que eróticos, e os homens a buscariam também para ouvir os versos que cantava com doçura e as belas ideias que sibilava, e a chamariam companheira - hetaira, sabendo que ela não era uma porné - prostituta. 

Mordidos por sua glória, maledicentes a acusaram de impiedade (asebeia), talvez para agredir seu namorado famoso. Diante dessas categorias, Aspásia, cujo nome significa "bem-vinda", poderia ser simplesmente o que foi, mulher plena e livre, bela e sábia, que veio de fora e dominou uma cidade imperialista, e fez-se um nome denso em imagens e poderes.

O destino desta mulher mostrou o que se podia e se pode realizar mesmo em situações adversas, como era o caso da condição feminina naquela cidade falocrática. Essa história, como a história dos feitos culturais daquela era, não serve para indultar uma sociedade firmada, como todas as demais em todas as épocas, em variadas violências e hipocrisias, mas serve para mostrar, Cristina, que é possível contar a história de uma cidade só com os nomes de mulheres artistas.

FRANCISCO MARSHALL

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