sábado, 2 de julho de 2022


02 DE JULHO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Há exceções, mas, em geral, existem quatro modelos que mantêm os relacionamentos de pé. As regras implicam exceções notáveis. Faça uma análise honesta, querida leitora e estimado leitor. Quase todos os casais podem ser enquadrados nos quatro modelos que descreverei. Enfatizo: quase todos...

O primeiro modelo foi descrito em um romance de 1938: O Feijão e o Sonho (Orígenes Lessa). O escritor paulista inventou um poeta, Campos Lara, idealista e que deseja fazer poesia tradicional. A esposa, Maria Rosa, é prática e luta com os devaneios do marido. Ela era o feijão, cotidiano; ele, o sonho. Em todo casal, um é dado a voar com sua imaginação idealista. Do outro lado, até pelo saudável equilíbrio, o cônjuge prático sabe que não existe almoço grátis. O feijão, confiável e concreto, tende a ser o mais chato. O sonho puro (insustentável e não pragmático) é mais leve.

O casal do segundo modelo trata de duas concepções de tempo. A primeira, agostiniana: o tempo é uma criatura e, como foi feito pelo Supremo Poder, é um dom. O tempo deve ser usufruído de forma generosa e levando em conta uma confiança em um arquiteto superior que o concebeu. A outra pessoa trata do tempo relógio, o tempo do mercador, como definiu o historiador Le Goff. Um se entrega ao deleite indiscernível do passar dos dias. O outro metrifica, coloca em planilha Excel e compartilha da máxima calvinista do time is money. Onde os dois acabam entrando em rota de conflito? Em geral, nas viagens: um quer executar planos minuciosos; o outro deseja se entregar às novas paisagens. Claro que há casais com combinações de tipos: o feijão tende à planilha, o sonho, à sensação agostiniana, de presente contínuo.

Já fiz crônica sobre a flor e o jardineiro. É o terceiro tipo. Sim, o casal amoroso apresenta cuidados recíprocos, jamais à mesma proporção. Um sempre tenderá ao papel do jardineiro, pensando em regar, adubar e, fato necessário, podar suas rosas. O outro membro da associação conjugal será mais flor. Com o tempo, isso parece até natural na gramática afetiva. A flor tende ao mimo; o jardineiro, ao mau humor orgulhoso por fazer tudo. O jardineiro pode ser feijão e usar o relógio do mercador. A flor é do tempo fluido e viceja no sonho.

Nenhum ser humano pode se orgulhar de estar 100% liberto do pensamento mágico. Faz parte da nossa espécie. Passamos mais tempo em cavernas, tomados de terror pelos raios e trovões, do que em laboratórios de física. É um peso cultural instintivo. Porém... Pensemos bem: sempre há no casal um feiticeiro e um cientista. O quarto modelo fala daquela dualidade curiosa. Vamos fazer um almoço no jardim? Um consultará a previsão do tempo ou pensará em lugares alternativos e plano B para situação de chuva. O outro jogará um ovo no telhado para Santa Clara.

Queremos prosperidade no lar? É possível pensar em um bom investimento ou... comer nhoque da sorte, todo dia 29, com uma nota de dólar sob o prato e ingerindo as primeiras porções de pé?

A casa precisa de proteção? Há vários caminhos. O assim chamado cientista procurará seguros residenciais, verificará trancas e alarmes, estimulará a presença de extintores e indicará algum treinamento familiar, em casos de emergência. O feiticeiro plantará um vaso com sete ervas protetoras contra olho-grande, colocará um elefante com o derrière voltado contra a porta, comprará um olho grego e alguma imagem protetora para pôr junto às saídas da residência. Em alguns casos mais elaborados, o feiticeiro fará disposição de espelhos, cristais, fontes de água e outras posições para reorganizar, a seu favor, o fluxo energético da casa.

Para garantir coesão textual, vamos lá: o feijão/time is money/jardineiro/cientista andará ao lado do sonho/tempo dom de Deus/rosa/mago. São, claro, tipos ideais. Quem compra cristais e os alinha cuidadosamente na estante da sala está em atitude de jardineiro, mais do que de flor. Crê, sinceramente, que o ato protegerá a casa e busca agir como protagonista. Se a casa tiver o privilégio raro de nunca ser assaltada, quem pode garantir que foram as trancas de ferro, a segurança contratada da rua ou as trancas energéticas do alinhamento dos cristais? Quem pode, de verdade, garantir a eficácia?

O mistério da natureza é o acasalamento entre os tipos descritos. Um mago sofrerá escárnio e atritos com um cientista ao lado. O racional perderá a paciência com o intuitivo mágico. Não obstante, a seta de Cupido aproxima, com frequência, um tipo ao seu polo oposto. Motivo de tal atração bizarra? Podem existir as causas em dois campos. Uma pessoa do casal dirá freudianamente: "Eu me aproximo da minha sombra, do denegado em mim". Outro, inclinado ao Taoismo, dirá: "São Yin e Yang na conspiração dos fluxos universais!".

Estaria inscrito nas estrelas ou seria fruto de um impulso psíquico? A esperança está no amor, que, claro, é um processo químico e um destino cármico ao mesmo tempo, como sabem os casais harmoniosamente polares.

LEANDRO KARNAL

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