sábado, 2 de março de 2024


02 DE MARÇO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

O avesso da egotrip

Quanto mais viajo, mais percebo que a recompensa visual - montanhas, lagos, monumentos - é um bônus, não o benefício premium. Claro que tudo que é belo encanta. Contrasta com o declínio, com a decadência, com o trágico que nos cerca. A beleza alivia a desesperança.

Mas hoje falo do aspecto paradoxal das viagens: vamos para longe a fim de sermos colocados em nosso lugar. Neste mundo de egos descontrolados, viajar tornou-se um exercício de humildade.

Estamos em outro país. Precisamos nos comunicar em um idioma que não dominamos. Com sorte, encontraremos nativos gentis que se esforçarão para nos entender e terão paciência com nossos erros - e erraremos à beça. Todos os dias, pequenos fracassos testarão nosso bom humor. Divertir-se com a própria ineficiência também pode ser relaxante.

Os aplicativos de celular respondem a quase todas as nossas dúvidas, mas eventualmente teremos que perguntar a um ser vivo se estamos mesmo próximos a determinado museu ou se aquela fila é a correta para pegar o teleférico. Precisaremos de ajuda para subir no trem com uma mala gigante, cheia de sapatos e roupas que não serão usados. Um fiscal poderá nos abordar numa blitz, dentro da estação de metrô. 

As lojas não oferecerão sacolas para colocarmos nossas compras, a não ser que paguemos um valor extra. Tomaremos banho de chuveirinho no hotel. Cansados de tantas selfies, pediremos a um estranho para que tire uma foto nossa com o ângulo mais aberto, torcendo para que ele não saia em disparada levando nosso aparelho.

Seremos surpreendidos por uma chuva diabólica na avenida mais luxuosa da cidade, o que nos obrigará a entrar no primeiro café. Para matar o tempo, sua mulher pedirá um suco e você tomará um capuccino. Na hora da conta, ao fazer a conversão da moeda, sentirá as pernas afrouxarem.

Pernas! Serão delas a incumbência de subir as escadarias que conduzem a santuários, de chegar ao último andar de um prédio histórico, de visitar arenas medievais e seus degraus de pedra com 50cm de altura, de percorrer rampas íngremes que levam a castelos ou a terraços com vista de 360 graus da cidade. O restaurante recomendado por uma prima talvez esteja a poucas quadras de distância, mas será preciso atravessar uma longa ponte até alcançá-lo e descobrir que a única mesa livre fica ao lado do banheiro.

Você não está em Pasárgada, não é amigo do rei e nenhum garçom lhe trata pelo nome. Se na sua terra você tem milhares de seguidores, lá fora é só mais um turista a superlotar as calçadas.

Por que sair de casa e se dar ao trabalho? Porque viajar não apenas nos faz transcender, também é uma ocasião oportuna de cair na real.

MARTHA MEDEIROS

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