sábado, 1 de junho de 2024


01 DE JUNHO DE 2024
MEMÓRIA

DO QUE RI KAFKA?

Há cem anos morria um dos maiores escritores do século 20. Um autor tão sofisticado que, décadas depois, ainda permite a descoberta de novas nuances de sua obra

ABRÃO SLAVUTZKY - Psicanalista e escritor

A casa dormia, a cidade dormia, Kafka então escrevia. Um dia Max Brod convenceu seu amigo escritor a ir num encontro com um editor. Foram, e o primeiro a falar foi Max, que exaltou um livro do amigo. Depois, foi a vez do editor. Kafka, como sempre, só escutava. Ao final da reunião, disse: Minha sugestão é que não me edite.

Jorge Luis Borges afirmou que Franz Kafka (3/7/1883-3/6/1924) é o número 1 dos escritores do século 20. Já Amos Oz escreveu que Kafka foi o maior profeta do século 20, capaz de prever a desumanização e as tiranias, a crueldade do poder e a impotência do ser humano. Ambos começaram a ler Kafka na adolescência e foram seus leitores por toda a vida.

Os adolescentes são seus leitores, o hashtag com a palavra Kafka tem mais de 40 milhões de visualizações. O entusiasmo dos jovens decorre dos temas como o da solidão, conflito com o pai, o desamparo, o poder opressivo. A opressão está na primeira frase dos dois livros mais famosos do escritor. A Metamorfose: "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos encontrou-se em sua cama transformado num inseto". Já 

O Processo começa assim: "Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum". Situações estranhas num mundo absurdo que geram desamparos sem fim. Kafka descreveu o mundo como desloucado, revelando como o fato louco é que o mundo louco seja considerado normal. Os autores escrevem à beira do abismo, já Kafka escreveu desde dentro deste, e desde aí se pode melhor entendê-lo. Entretanto, há esperança, é preciso imaginar o amanhã, mas falta pouco para se pensar como Kafka ao dizer: "A esperança existe mas não para nós".

O livro mais lido de Freud é o Mal estar na Cultura, em alemão, Unbehagen in der Kultur, sendo que a palavra unbehagen significa "desprotegido", "desamparo". O desamparo é a essência da existência, tanto em Kafka como em Freud. A palavra unbehagen se associa ao termo Unheimlich - estranho, sinistro -, título de um ensaio essencial da psicanálise. Significa o não familiar, o que deveria ter permanecido oculto e, ao vir à luz, aterroriza. O desconhecido assustador está tanto na ficção de Kafka como em Freud, que teorizou a partir de conceitos como inconsciente, pulsões, entre outros.

Reiner Stach é autor da trilogia sobre a vida e a obra de Kafka, biografia saudada como a mais alta realização nesse campo. Nela se pode ler como o escritor desde criança estava familiarizado com pessoas degradadas em animais. Seu pai adorava dizer da cozinheira que era uma "vaca", o ajudante da loja ele chamava de "cão doente", o filho era um "porcão". O mais desprezado dos animais é o inseto, daí a praga, a barata, e o escritor cria um inseto para escrever sua Metamorfose.

Stach destaca alguns dos pontos centrais da obra de Kafka: pai, judaísmo, doença, assalariado, solidão, processo criativo, batalha em torno da sexualidade e do casamento. Chama atenção para o cômico e o humor na sua obra, mas antes dele foi Walter Benjamin que escreveu ser o humor o elemento essencial em Kafka. Tardei em entender esse humor. É um humor original, um humor ácido, humor do desamparo.

O adjetivo "kafkiano" expressa a vida como absurda, angustiante, terrorífica, mas desde a década de 1990 é preciso incluir nesse adjetivo o humor. Stach escreve que cada vez mais leitores percebem o quanto há de humor em sua obra. A descoberta do sentido de humor em Kafka explica por que ele e seus amigos riam quando o escritor lia em voz alta seus escritos. 

O humor aliviou o escritor, que se casou com a escrita, sua terapia. Kafka foi herdeiro do humor judaico, dos comentários talmúdicos, medita sobre a lei e seus mistérios, como no livro O Processo. Trabalha ainda com parábolas, fábulas, contos, que são como reflexões rabínicas. Teve ainda interesse pela cabala e o sionismo, sonhou em ir para Israel. Sua tristeza sobre a humanidade pode ser contagiante. Sintonizar com Kafka é apreender com o não pertencente, compartir a solidão do humilhado. Quando a sintonia aumenta se requer ajuda em apoios como Chaplin e na renovada Sbórnia.

Kafka escreveu: "Vivo na minha família mais estranho do que um estrangeiro". Talvez uma das coisas que nos tocam é esse sentimento de estrangeiro, é o estranho inconsciente que vive na gente. O escritor se aliviou da solidão escrevendo, conversando, lendo, e morreu sem saber de sua genialidade.

Finalmente, indico um livro com 30 histórias breves: Narrativas do Espólio. Um exemplo dessa obra: "A verdade sobre Sancho Pança", na qual o gordinho pequeno foi quem inventou Dom Quixote e suas quixotadas o divertiam. É a graça do humor na inversão da lógica comum. Um presente final de Kafka para nós: "Quem tem a capacidade de ver a beleza não envelhece".

Ah, de que mesmo ri Kafka? Do sucesso.

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