sábado, 2 de março de 2019


02 DE MARÇO DE 2019
CARPINEJAR

A família longe dos contos de fadas


A família não é um conto de fadas, mas os contos de fadas não ajudam nem um pouquinho a família.

Cinderela é maltratada pela madrasta, o que todo mundo sabe, mas também pelas duas irmãs. Nem as irmãs inspiram confiança. O mesmo pode-se notar com os três porquinhos, que entram em uma competição para ver quem é melhor. O pai de Branca de Neve é omisso, e o da Bela sacrifica a filha para se salvar. Pinóquio não pode mentir senão perde a condição de humano. Lar é prisão, feito de inveja e ciúme.

As histórias só despertam suspeitas dentro de casa. Passa-se a mensagem de que o perigo dorme no quarto ao lado. A salvação vem de fora: ou com príncipes ou com anões, estranhos que devem resgatar as vítimas dos grilhões domésticos.

Talvez a avó de Chapeuzinho Vermelho seja uma exceção à regra, mas ela também sofre por ser boazinha.

Quem diz que as crianças não guardam essas ciladas imaginárias até dar o bote na adolescência? Como gostar da nova mulher que o pai casa ou do padrasto? Como não rivalizar com os manos? Como não se indispor com as tarefas, e não entender os encargos de arrumar a cama, faxinar e lavar a louça como exploração e castigo?

Na verdade, guarda-se o condicionamento de que é preciso suportar pai e mãe, aguentar os irmãos, para uma redenção externa, pessoal e egoísta. Alívio é se ver livre das próprias raízes e viajar o mundo.

Não existe noções de solidariedade e de completude nos laços de sangue. Ninguém ajuda ninguém a ser feliz ou superar os ritos de passagem. É a ideia que vigora nas construções maniqueístas ficcionais.

Não amamos a família. Pois colocamos na família a nossa culpa e fonte de problemas. Somos errados porque temos a referência traumática de tal mãe ou de tal pai, em completa e oportunista isenção de nossas responsabilidades e de nossas escolhas. Os desvios são debitados sempre em nossa origem. Quando acertamos, acertamos sozinhos. Os méritos são exclusivamente nossos. Quando falhamos, são os nossos provedores. É um jogo psicanalítico injusto para eles.

Ao ler os contos para os filhos dormirem, os pai não reparam, ingênuos que são, mas gradualmente vão virando os pesadelos de seus pequenos.

CARPINEJAR

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