sábado, 2 de março de 2019


02 DE MARÇO DE 2019
PESQUISA

UM TRUQUE PARA SALVAR VIDAS


CIENTISTAS AMERICANOS ESTÃO TREINANDO O SISTEMA IMUNOLÓGICO PARA ACEITAR NOVOS ÓRGÃOS

Não parecia um problema grave de saúde, apenas um sangramento no nariz que não queria parar. Por isso, em fevereiro de 2017, Michael Schaffer, que tem 60 anos e mora próximo de Pittsburgh, nos EUA, foi primeiro a um serviço de emergência local e depois a um hospital, onde um médico finalmente conseguiu cauterizar um pequeno corte que havia em sua narina. Então, o médico disse a Schaffer algo que ele nunca esperava escutar:

- Você precisa de um transplante de fígado.

Schaffer não tinha ideia de que seu fígado estava falhando. Até então, nunca tinha ouvido falar do diagnóstico: EHNA, ou esteato-hepatite não alcoólica, uma doença hepática gordurosa não relacionada a alcoolismo ou infecções. A doença pode não apresentar sintomas óbvios, mesmo se estiver danificando o órgão. O sangramento nasal era sinal de que o fígado de Schaffer não estava produzindo as proteínas necessárias para o sangue coagular.

A notícia foi acompanhada de outro susto: os médicos pediram a Schaffer que se tornasse o primeiro paciente a participar de um teste clínico que tentaria alcançar algo que os cirurgiões de transplantes vinham sonhando há mais de 65 anos. Se desse certo, ele receberia um fígado de um doador sem precisar tomar remédios agressivos que impedem o sistema imunológico de rejeitá-lo.

Antes de serem descobertos os remédios contra rejeição, os transplantes de órgãos eram simplesmente impossíveis. A única maneira de fazer com que o corpo aceite um órgão doado é suprimindo sua resposta imunológica. Mas as drogas em si aumentam os riscos de infecção, câncer, altos níveis de colesterol, doenças cardíacas avançadas, diabetes e falência dos rins. Em média, 25% dos pacientes morrem após cinco anos do transplante de fígado. Após 10 anos, esse número sobe para 35% a 40%.

- Mesmo que o fígado esteja funcionando, os pacientes morrem de ataque cardíaco ou falência dos rins. As mortes podem não ser causadas apenas pelos remédios contra rejeição, mas eles contribuem - diz Abhinav Humar, cirurgião de transplante do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh, que coordena o estudo de que Schaffer está participando.

Os rins, especialmente, são prejudicados.

- Não raro, precisamos fazer um transplante de rim em pacientes que já tinham transplantado o pulmão, o fígado ou o coração - informa Humar.

Normalmente, os pacientes sabem dos riscos oferecidos pelas drogas, mas a alternativa é pior: a morte, para aqueles que precisam de um novo fígado, coração ou pulmão; ou, para os pacientes renais, uma vida em diálise, que diminui ainda mais a expectativa e a qualidade de vida.

Uma luz no fim do túnel

Em 1953, o médico Peter Medawar e seus colegas realizaram um experimento na Grã-Bretanha que rendeu um Prêmio Nobel. Ele mostrou ser possível "treinar" o sistema imunológico de ratos para que eles não rejeitassem tecidos transplantados. O método utilizado não era exatamente prático. Envolvia injetar em ratos recém-nascidos, ou ainda fetais, células brancas do sangue de ratos sem parentesco. Quando os animais atingiam a idade adulta, os pesquisadores faziam um enxerto de pele dos ratos sem parentesco nas costas daqueles que receberam as células sanguíneas.

Os ratos aceitaram os enxertos como se fossem sua própria pele, sugerindo que o sistema imunológico pode ser modificado. O estudo levou a uma caça científica para encontrar uma maneira de treinar o sistema imunológico de adultos que precisem de novos órgãos. Essa se mostrou uma árdua tarefa. O sistema imunológico dos adultos já está desenvolvido, enquanto que o dos ratos bebês está ainda "aprendendo" o que é estranho e o que não é.

- Estamos tentando enganar o sistema imunológico do corpo, o que não é fácil - compara Humar.

Segundo James Markmann, chefe da divisão de cirurgia de transplante do Massachusetts General Hospital, a maioria dos estudos científicos até agora se concentrou em pacientes de transplante de fígado ou rim por diversas razões. Esses órgãos podem ser transplantados de doadores vivos, ou seja, as células do doador estão disponíveis para serem utilizadas na tentativa de treinar o sistema imunológico do paciente.

O rim lidera a lista dos órgãos de que as pessoas mais precisam. E esses rins transplantados raramente sobrevivem a uma vida inteira, sendo agredidos pelos remédios imunossupressores.

- Se você tem 30 ou 40 anos e recebe um transplante de rim, esse não será o único rim de que vai precisar - afirma Joseph Leventhal, que dirige os programas de transplante de rim e pâncreas na Universidade Northwestern.

Outra razão para dar preferência aos rins é que, "se algo der errado, não é o fim do mundo", ameniza Markmann. Se a experiência de libertar os pacientes dos imunossupressores falhar, a diálise é capaz de limpar o sangue. Já para outros órgãos transplantados, a rejeição pode significar a morte.

O fígado intriga os pesquisadores por diferentes razões. Ele tem menos chance de ser rejeitado pelo sistema imunológico do corpo e, se a rejeição realmente ocorrer, há menos perigos imediatos para o órgão. E, às vezes, após as pessoas terem vivido com um fígado transplantado por anos, o corpo delas simplesmente o aceita. Alguns pacientes descobriram isso sem querer, quando decidiram parar de tomar os imunossupressores por conta própria, normalmente devido aos altos custos e efeitos colaterais. Entre 15% e 20% dos pacientes que tiveram fígados transplantados e tentaram essa arriscada estratégia obtiveram sucesso, mas apenas após anos tomando as drogas.

Em um dos testes, Alberto Sanchez-Fueyo, especialista em fígado da King?s College London, relatou que 80% poderiam parar de tomar os remédios contra rejeição. Em geral, os pacientes eram mais velhos (o sistema imunológico fica mais fraco com a idade) e fazia tempo que estavam sob terapia de imunossupressão; a biópsia do fígado deles deu normal. Por outro lado, o dano causado pelas drogas imunossupressoras é cumulativo e irreversível, e prolongar seu uso por uma década ou mais pode causar prejuízos significativos. Mesmo assim, não há como prever quem vai conseguir ter êxito ao suspender a medicação.

O plano dos linfócitos T

Quanto mais os pesquisadores aprendiam sobre a sinfonia das células brancas do sangue que controlam as respostas a infecções e tipos de câncer - e órgãos transplantados -, mais esperançosos ficavam quanto à possibilidade de modificar o sistema imunológico.

Há muitos tipos de células brancas sanguíneas que trabalham juntas para criar e controlar as respostas imunológicas. Alguns pesquisadores, incluindo Markmann, optaram por concentrar esforços nas células chamadas de linfócitos T regulatórios. Essas raras células brancas do sangue ajudam o corpo a perceber as próprias células como não estranhas. Se há escassez dessas células regulatórias ou caso elas sejam deficientes, as pessoas podem desenvolver doenças em que o próprio sistema imune começa a atacar tecidos e órgãos.

A ideia é isolar as células T regulatórias de um paciente prestes a receber um transplante de fígado ou rim. Portanto, os cientistas vão tentar produzi-las em laboratório junto com as células do doador para, em seguida, inseri-las novamente no paciente. Os cientistas esperam que o processo ensine o sistema imunológico a aceitar o órgão doado como parte do corpo do paciente.

- As novas células T sinalizam para o resto do sistema imunológico que deixe o órgão em paz - explica Angus Thomson, diretor de imunologia de transplantes no Centro Médico da Universidade de Pittsburgh.

"viver até os 100 e morrer COM UM TIRO NA CAMA

Quando Schaffer, o paciente de Pittsburgh, descobriu que precisava de um fígado e que possivelmente seria o primeiro paciente do grupo de teste clínico, ele hesitou. "Alguém tem de ser o primeiro", desabafou. Ele começou a busca por um doador vivo, um parente próximo disposto a se submeter a uma cirurgia de grande porte para remover um lobo do fígado - ou um estranho disposto a doar e cujas células fossem compatíveis.

Os cientistas de Pittsburgh o orientaram sobre como proceder. Primeiro, perguntar à família imediata, depois a parentes, amigos e então colegas. Se não desse resultado, ele teria de começar uma campanha com flyers e posts no Facebook. Schaffer tem sete irmãos. Quatro tinham mais de 55 anos, muito velhos para enfrentar a remoção de parte do fígado de forma segura. Os três mais novos estavam com a saúde frágil. Ele passou a indagar sobrinhos. Três concordaram em doar, e uma, Deidre Cannon, 34 anos, que era compatível, submeteu-se à operação, que se realizou no dia 28 de setembro de 2017.

Após o procedimento, Schaffer estava tomando 40 comprimidos por dia para prevenir infecções e conter o sistema imunológico, enquanto o corpo aprendia a aceitar o novo órgão. Agora, só precisa de um, uma dose baixa de apenas um dos três medicamentos contra rejeição que tomava a princípio. E os médicos pretendem ainda suspendê-lo.

Esse caso pode parecer intrigante, mas Schaffer é apenas um paciente. Os cientistas pretendem testar o procedimento em outros 12 e, se tiverem sucesso, expandir o estudo.

Para Schaffer, tudo valeu a pena. Está ativo, trabalhando com o neto adolescente na troca dos azulejos do piso da cozinha. Tira neve e apara a grama para vizinhos e ajuda a cuidar dos netos depois da escola. Ele brinca:

- Meu objetivo é viver até os 100 anos e morrer com um tiro na cama disparado por um marido ciumento.

The New York Times - GINA KOLATA

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