sábado, 9 de março de 2019


09 DE MARÇO DE 2019
JULIA DANTAS

UM PAÍS DIVERSO, QUEIRA-SE OU NÃO

Ninguém pode ter ficado surpreso com as confusões na Cidade Baixa durante o Carnaval. As piores brigas e interferências da polícia ocorreram nos dias em que não havia evento apoiado pela prefeitura. A aglomeração de gente foi espontânea, mas previsível: a maior festa brasileira sempre vai levar milhares de jovens às ruas. Fingir que não há necessidade de espaços e programação para esse público é irresponsável.

Mas assim como há bebês que tapam os olhos e acham que ficam invisíveis, tem quem ache que, se não olhar para as demandas da população, elas vão desaparecer. Não é mérito exclusivo da nossa prefeitura. Quando o governo decide inspecionar todas as questões do banco de dados do Enem a fim de eliminar as que contenham "ideologia de gênero", está agindo na esperança de fazer sumir os debates sobre feminismo e as pautas identitárias, como se removê-las de uma prova automaticamente as removesse do mundo real. Que o incômodo tenha surgido principalmente devido ao uso do pajubá em uma das questões é ainda mais simbólico. A linguagem incomoda tanto porque confirma a existência de algo: aquilo que tem nome é mais palpável, não pode ser ignorado.

Ano passado, num congresso na UFRJ, ouvi um professor questionar uma pós-graduanda sobre o motivo pelo qual ela se apresentava como intelectual negra. Para ele, o termo "intelectual" estava ultrapassado, não havia mais motivo para usá-lo. Naturalmente, a aluna explicou como, após séculos em que as pessoas negras tiveram seu acesso negado a esse espaço, era importante firmar a posição e se apropriar do termo. Mas não teve jeito: o professor ainda considerava uma bobagem se declarar intelectual hoje em dia. Para quem ouvia o debate ficou a impressão de que o problema eram aquelas jovens mulheres pleiteando um título que antes só cabia a pessoas mais parecidas ao professor.

Ao falar que não havia mais necessidade de chamar-se intelectual, ele dizia: "Intelectuais somos nós, que chegamos antes à universidade, vocês são outra coisa". Para quem não quer aceitar esse novo grupo de intelectuais, a saída é negar a relevância dos intelectuais, enclausurá-los no passado e, assim, salvaguardar um lugar de exclusividade e permitir-se não olhar para tudo que esses acadêmicos inéditos trazem de inovador e questionador para dentro das universidades. Se eu não olho, não preciso confrontar. Não faltam professores que tentam recriar dentro das instituições os guetos da sociedade.

Soam como assuntos muito diferentes, mas existe algo em comum entre o Carnaval, o pajubá e o conhecimento: eles não precisam de aval do Estado. Podem se beneficiar de apoio oficial, mas também vão seguir seus trânsitos se não houver reconhecimento. Nesse país imenso repleto de foliões, conservadores, festeiros, caseiros e tudo que há no meio; de gays, héteros, trans e tudo que há no meio; de intelectuais negros, indígenas, brancos, estrangeiros e tudo que há no meio, não é possível deixar de se olhar para uma parcela da população. Ou até é, mas ela não vai deixar de existir e ocupar seu espaço só porque não estamos olhando.

JULIA DANTAS

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