sábado, 2 de março de 2019


02 DE MARÇO DE 2019
JJ CAMARGO

TER EM QUEM CONFIAR

Por que quase todos os sem-teto buscam o afeto de um cão e rua e fazem dele um parceiro de desdita e abandono

Que ninguém seja ingênuo de supor que se possa encontrar um poço de virtudes em um morador de rua. Por mais que tenha sido injustiçado, é frequente que este protótipo de solidão tenha sido construído com grande participação da vítima. Mas esse não é o ponto. O que interessa é que esse solitário padrão precisa de alguma maneira sobreviver, e isso significa encontrar algum objeto de solidariedade que seja confiável, apesar da completa ausência de atrativos. E então entendemos porque quase todos os sem-teto buscam o afeto, sempre confiável, de um cão de rua, e fazem dele um parceiro de desdita e abandono.

Como sempre, as amizades construídas na desgraça são mais resistentes, e, como combinam conformismo com reciprocidade, são mais calorosas e definitivas. Os responsáveis pelo resgate dos sem-teto, ameaçados de enregelamento nas noites implacáveis de inverno, referem a permanente resistência dos infelizes que se negam a abandonar os parceiros fiéis. Esses moradores de rua não se sentem nem um pouco seduzidos pela promessa de cobertor e comida quente se essas maravilhas não puderem ser compartilhadas com quem enfrentou tanto frio e fome sem latir em protesto.

De tanto enfrentarem essa resistência diante da oferta de albergue parcial, centros comunitários de algumas capitais passaram a oferecer o acolhimento duplo, e então, os dois amigos inseparáveis festejam a generosidade como modelos de um bloco único de pobreza e solidão.

É tão antiga esta relação entre o homem e o seu melhor amigo no reino animal, que a internet está cheia de vídeos, sempre emocionantes, como um recente que mostra um jovem oriental se preparando para viajar e explicando ao seu golden retriever da sua intenção, o que fez com que o bichinho primeiro se alojasse dentro da mala e depois, desesperado porque ficara pra trás, jogasse numa sacola todas as suas coisas, incluindo a bandeja de alumínio da comida, e saísse em disparada pela rua até alcançar seu dono que arrastava a mala pela calçada. A ternura do olhar no reencontro é de derrubar.

Aqui, na Avenida Getúlio Vargas, ao lado do Pão da Fé, a melhor padaria da cidade, há uma grande marquise, onde, nos dias frios, se acomodam os miseráveis famintos. Um dia desses, ao sair da padaria, fui chamado por um mendigo que pediu um dinheirinho porque estava "sem comer desde ontem". Como fome, feito frio, sempre mexe comigo, decidi voltar e comprar um sanduiche para garantir o melhor destino ao pedido. Quando fiz a volta para entrar no carro, percebi que depois de uma mordida generosa que consumiu metade do presente, ele ofereceu a outra metade a um vira-latas de olhos fundos que a devorou num instante, e em seguida lhe lambeu as mãos, de um jeito que os humanos civilizados não sabem agradecer.

JJ CAMARGO

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