sábado, 2 de março de 2019


02 DE MARÇO DE 2019
PAULO GLEICH

EXCESSO DE PRESENTE


No dia em que saí em viagem de férias, fui uma das vítimas do drone que algum engraçadinho fez sobrevoar o aeroporto de Porto Alegre: meu voo atrasou, perdi a conexão e só consegui chegar no dia seguinte ao meu destino. Foi um começo torto para meus dias de descanso, rapidamente curado graças às águas límpidas e mornas do litoral baiano e à doçura de sua gente.

A reação dos passageiros ao anúncio do atraso e de sua causa oscilou entre a incredulidade e a raiva, por ser um motivo tão patético. Alguém mais exaltado bradava que se devia abater a tiros não apenas a geringonça como seu proprietário, com o ódio despudorado que em nossos dias tornou-se banal e até aceitável. Afortunadamente, não encontrou eco entre os demais, que apenas esperaram pacientemente até a normalização da situação.

Por graça do destino, que às vezes parece ter prazer em nos testar, o voo para o qual fui realocado também foi alvo de um atraso de mais de duas horas. Novamente, manifestações de indignação e raiva pipocaram entre os passageiros, mas antes que a onda avançasse começou o embarque e todos se acalmaram.

Na mesma semana, viralizou no Twitter uma história sobre um casal que distribuiu, no avião em que viajava, saquinhos com bombons entre os passageiros sentados próximo a seus assentos. Com os bombons, um bilhete pedia desculpas de antemão pelo possível incômodo causado pelo choro de seu bebê durante o voo. Muitos elogiaram o gesto dos pais, até que começou a circular a pergunta: por que é preciso se desculpar por algo tão natural como o choro de um bebê?

Ambas cenas colocam em jogo a intolerância com a frustração, que em algumas situações atinge ápices que beiram o ridículo. Sim, não é nada agradável ter seu voo atrasado por um motivo banal como um drone, mas imprevistos dessa e de outras naturezas são sempre uma possibilidade não só em voos como na vida. Quanto ao choro de um bebê, bem, não é nem um imprevisto: apenas um golpe do azar caso toque sentar perto do pequeno. Paciência.

Diz o senso comum da nossa época que vivemos demais no passado e no futuro, e que pouco estamos no presente. Discordo: tamanha intolerância à frustração revela um excesso de fixação no presente, sem possibilidade de ampliação da perspectiva. A exaltação com um atraso diz da impossibilidade de se descolar da situação atual, e a reação indignada reflete a necessidade de uma reação, mesmo que seus efeitos sejam estéreis - o voo não vai decolar mais rápido com os brados. No caso do bebê, ainda mais flagrante, ignora-se o óbvio: que todos nós já causamos incômodo com nosso choro, assim como o fazem ou farão nossos filhos.

Intolerantes às frustrações, somos insidiosamente invadidos por uma lógica que busca eliminá-las a qualquer preço: proibindo, censurando, excluindo e, em seu extremo, matando. Não se quer saber de causas, contextos, complexidades: apenas que a paz seja restaurada, e da forma mais simples e imediata. Acabe-se já com o que incomoda para restabelecer a paz - até que venha o próximo incômodo.

Os reflexos disso se veem em situações banais com as dos voos, mas também em outras mais sérias e graves, como os rumos da política e das questões sociais. Soluções imediatas são tentadoras para silenciar a frustração, mas não dão conta do principal: essa lógica nos faz reféns de nossas sensações imediatas - a mesma lógica, aliás, que rege a vida dos bebês e das crianças pequenas.

paulogleich@yahoo.com - PAULO GLEICH

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