sábado, 8 de fevereiro de 2020



08 DE FEVEREIRO DE 2020
CARPINEJAR

As pernas de minha mãe

Não importa o problema de doença que a minha mãe tenha, ela sempre diz que elogiaram as suas pernas. É o único diagnóstico que não me omite.

Aos 80 anos, Maria continua com pernas bonitas, roliças, como se fosse uma jovem de tranças, saindo de Guaporé para estudar na Capital.

Têm sido assim as nossas conversas médicas. Ela diz que foi ver os olhos, tento descobrir mais detalhes da cirurgia de catarata, e vem com o assunto das pernas.

Ela avisa que está cuidando da pressão, esforço-me para entender qual a última contagem e se tomará algum remédio para o controle, e volta a falar de suas pernas.

Ela comparece no cardiologista, e, por algum desígnio estranho das palavras, encontra um nexo para descrever o estado perfeito de suas pernas. Ela conta que foi no dermatologista, que escamou a pele perigosa no pré-câncer e me engana de novo com o esplendor de suas pernas.

Ela descreve suas sessões de fisioterapia e nunca me poupa de comentar as suas pernas, de que recebeu exclamação de inveja da profissional, que chama atenção alguém de sua idade detendo tal par esbelto e sempiterno.

Pitaco aqui, pitaco acolá, os seus joelhos não envelhecem, com a rigidez da confiança.

Questionei se ela não anda mostrando as suas pernas demais. O convênio de saúde já estava cheirando a safadeza. - Não, meu filho, minhas pernas brilham.

- Como assim, brilham?

Entrei no seu raciocínio para verificar até onde ela ia, do mesmo jeito que costumamos fazer com as crianças, concordando, buscando ganhar confiança.

- Brilham como estrelas?

- Nada disso, retorquiu. Como pedras redondas no leito de um rio.

Daí ela confessou que as suas pernas mantêm o colágeno porque vivia se banhando no Rio Taquari, em Muçum, durante a infância.

- Eu caminhava sobre os cascalhos sem cair, malabarista das águas escuras. Eu pisava nas pedras que brilhavam ao sol. Havia uma escada no fundo para quem seguia a luz.

Fui compreendendo que era uma parábola sobre a longevidade, mais do que uma lição de estética. Aquelas pedras rolam anos e anos em atrito com as outras, desfazendo as suas pontas cortantes. Da mesma maneira, em contato com as dificuldades da vida, perdemos os excessos, o supérfluo de nossas formas, evidenciando, com o tempo, apenas a nossa essência.

Minha mãe não tem pernas, mas seixos esculpidos pela natureza.

CARPINEJAR

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