sábado, 7 de março de 2020



07 DE MARÇO DE 2020
CARPINEJAR

Existe pessoa fácil?

Não sou uma pessoa fácil.Essa talvez seja a primeira regra para não despejar nos amigos e parentes as frustrações por não me entenderem rapidamente. Alivio a barra de quem convive comigo e nem sempre decifra o meu comportamento ou concorda com as minhas decisões. Já tiro também a culpa que o interlocutor possa sentir por não gostar de mim numa primeira impressão.

Não demonstro os sentimentos do jeito que os outros esperam. Quisera ser linear, porém faço o contrário das expectativas.

Nem sempre estou rindo quando estou feliz. Fico calmo. Estranhamente calmo. Nada me perturba. Tenho uma maior paciência para enfrentar contratempos e adversidades, e não sinto que a maré mudou com pequenos azares. Perdoo qualquer mentira com uma beatitude irônica. Meu contentamento é imune às baixas da bolsa das redes sociais. Pareço mais sério do que entusiasmado. Por dentro, tudo está no lugar, como um quebra-cabeça recém montado. A firmeza me garante a elegância.

No instante em que explodo de raiva, costumo me isolar. Não tenho o prazer de desaforar e humilhar oponentes numa discussão. Sei do perigo do descontrole. Torno-me um animal intuitivo e passional. Eu me fecho numa jaula e engulo a chave. Preciso ler para mudar a minha frequência e me distrair em novas histórias e pensamentos. Devorei a maior parte de minha biblioteca para me conter e não machucar ninguém, nem a mim mesmo, com as palavras erradas.

Já quando me encontro triste, sou capaz de dar as mais inesperadas gargalhadas. Minha risada vem mais do medo do que da satisfação. Eu tento recuperar a estima abrindo a boca e mostrando os dentes. Quem me vê de fora pensa que estou nadando num mar de rosas, mas na verdade venho tirando os espinhos da pele. Rir é exorcizar, expulsar as dificuldades, combater o pessimismo antes de se achar vítima do destino e contabilizar as decepções na Lei de Murphy.

Só choro de emoção, não de tristeza, principalmente quando alguém com dificuldade de amar decide se entregar a um afeto. Não resisto ao esforço da sensibilidade de superar o silêncio cascudo das aparências. Por exemplo, nunca derramei tantas lágrimas quando testemunhei, na infância, o meu pai desabando nos ombros de seu pai. Eles nunca, até aquele momento, tinham dito que se amavam. Foi um eu te amo líquido. Os olhos avermelhados dos dois buscavam recuperar o tempo perdido. Um adulto e um velho abraçados como crianças, murmurando, não dava para dizer quem dava colo para quem.

Acho, sinceramente, que não existe pessoa fácil. Todas deveriam vir com manual de instruções. É próprio do homem e da mulher ser Java. Assim como o programa, somos obrigados a baixar as novas atualizações para abrir as janelas de nossa alma.

CARPINEJAR

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