sábado, 14 de março de 2020


14 DE MARÇO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

SOCIEDADE E MERCADO (II)

Esta é a sequência da fábula de Sociedade e Mercado, que outrora assombrou mundo e cidades, corações e mentes. A fábula contava de uma senhora aldeia chamada Sociedade, em que viviam muitas gentes, classes e clubes. Um destes, de desmesurada ambição, Mercado, agrediu e devorou Sociedade, enquanto camuflava-se de Realidade, e abocanhou Esfera Pública e Espaço Público.

Um dia, com muita ciência e drama, um grupo insurgente, tal como Cronos diante de Urano na teogonia grega, cevado por Pacha Mama, montou tocaia e afinal conseguiu, com análises cortantes, desmascarar aquela falsa Realidade, e tirar também o manto do Mercado, e o que então se encontrou foi um primo de Alien, o oitavo passageiro, chamado Capital. Logo acima, movendo Capital como marionete, estava Mega Capital, tirano global daquela era mórbida. Desvendada a trama, restava recompor a História e o corpo de Sociedade, mutilada pelos malfeitos egoístas da maligna trindade.

Mesmo desmascarado, porém, Mega Capital não abria mão do poder que possuía, pois havia-se imposto a numerosa parte da Sociedade como se fosse mais que Realidade, uma divindade. Isso não fora difícil, pois a mente dos crentes é similar à dos que acreditam nos poderes sobrenaturais do Mercado, o insaciável monstro com mão invisível e dentes afiados. Outrora respeitosos, alguns grupos de Sociedade haviam-se transfigurado e passaram a agir como zumbis; facilmente mutilavam-se, apoiando a perda dos próprios direitos e benefícios, e avançaram agredindo os demais, com carga pútrida de preconceitos, mentiras e irracionalidades. Desnudado, Mega Capital perdeu completamente o pudor e assumiu o controle da tropa de crentes zumbis. O mundo parecia perdido, e a parte sã da Sociedade, atônita, consumia-se em mensagens endógenas, rezas vãs no velório da esperança.

Foi quando as partes começaram a unir-se como gotas d?água, que, ínfimas no coração da África, convergem e crescem ao se tocar, avolumam-se, deslizam no dorso da paisagem, tornam-se seiva da terra, e afinal transbordam no Mediterrâneo como Nilo, prodígio do planeta, e em seu caminho só há fecundidade e vida. Símbolos, sinais e inteligências uniram-se, água via parreiras tornou-se vinho de Dioniso, de sua concha Vênus sorriu benévola, olhares há pouco murchos brilharam, havia nova potência, libertadora, e caminhos para enfrentar e superar os inimigos da Sociedade. Em Alexandria, formaram-se coletivos e levaram ao apogeu o antídoto eficiente, chamado Lastro Imbatível Veramente Revolucionário e Orgânico, abreviado Livro. 

Combinado com Ações Renovadoras Transformando Energias, Arte, Livro tornou-se veículo para realizar o que sua palavra promete, livrar as pessoas e Sociedade do jugo de quaisquer servidões. E foi assim que Livro e Arte passaram a agir como esta fábula, gota d?água que ao encontrar sua retina e inundar sua mente encontra-se com o fluxo de seu sangue e vontades, torna-se seiva e vai alimentar o imenso manancial com que se fecunda o deserto e se vence qualquer assombro.

FRANCISCO MARSHALL


14 DE MARÇO DE 2020
ARTIGO

UM PERDÃO DIVERSO

A CONTROVÉRSIA EM TORNO DO ABRAÇO DE DRAUZIO VARELLA A UMA CONDENADA TRANS, LEVADA AO AR NO FANTÁSTICO, ESCANCARA UM IMBRÓGLIO VIOLENTO QUE ESTÁ AMEAÇANDO NOSSA LIBERDADE DE PENSAMENTO, ESCREVE PSICANALISTA

Ao dar carinho para um condenado, o médico Drauzio Varella foi condenado também. O gesto e suas respectivas condenações abrem um debate. O tema transcende a questão de crime e perdão. Aponta para um aspecto terrível de nossa contemporaneidade, sobre o qual ainda não tivemos tempo de refletir. Estamos divididos (diz-se, polarizados), vivendo, paradoxalmente, um momento de expressões da diversidade e reações violentas a posicionamentos alheios ao nosso.

De certa forma, vivemos um retrocesso, no sentido histórico, mas também psicológico. Freud abriu os trabalhos, mas foi uma pioneira mulher de fibra, chamada Melanie Klein, que aprofundou a ideia do quanto começamos psiquicamente limitados, vendo mãe e mundo como partes. E o quanto leva tempo ou trabalho (psíquico) para atingirmos uma saudável integração. Klein alertou ainda que tal descoberta, assim como um samba para o poeta Vinícius de Moraes, não pode ser vivida sem tristeza.

Por isso, poucos chegam a ela, e ninguém o faz completamente. Estamos sempre prontos para voltar a ver a realidade parcialmente, sem aceitar que ela nos frustra, e retomando posições medievais. Justo aqui o interesse da criança pelos contos de fada, onde não tem firula ou mimimi: fada é boa, bruxa é má e fim de papo. Aparentemente, porque, nas profundezas de si, a criança está trabalhando a lenta, dura e difícil aceitação de que as pessoas de verdade não são nem uma coisa nem outra. Guardadas as diferentes percentagens subjetivas que cada um de nós carrega, há bruxa e fada (herói e ogro), dentro de todos nós.

Precisei da digressão para voltar ao episódio Drauzio Varella. Precisamos sempre de tempo (e espaço) para repensar e chegar à inevitável diversidade em tudo o que envolve a natureza, incluindo a humana. Bastou o médico oferecer carinho a um condenado por um crime hediondo que ele desconhecia, e houve uma enxurrada de críticas violentas (do governo, inclusive).

Ao condenar compulsoriamente uma atitude como a dele, tolhe-se a liberdade de uma abordagem diversa da que concebemos, e aqui pode estar o problema maior, especialmente na forma virulenta como é expressado. O imbróglio de nossos dias volta à tona, ameaçando a liberdade do pensamento. Ainda não entendemos o que se passa, mas os psicanalistas, arautos do livre pensar, podem trazer uma contribuição interessante.

Ao não admitirmos que se dê carinho (carinho, não perdão) a um delinquente, não concebemos que poderíamos estar no lugar dele, caso a nossa percentagem bruxa não tivesse sido mitigada por muito amor e apego, outra hipótese já lançada por Freud e seus colegas. Exercendo a grande arte de ferir quem nos fere, segundo o verso do poeta Arquíloco, faltamos com a empatia, instrumento principal para curar ou transformar, mesmo quando isso é improvável.

Freud foi autor de ideias como compreender não significa perdoar, embora o conceito do perdão esteja mais afeito às religiões, à metafísica, à filosofia. O próprio criador da psicanálise não era lá essas coisas para perdoar, mas se saiu muito melhor ao propor um espaço e um tempo - aliás, cada vez mais escassos - para elaborarmos sentimentos difíceis. Poder expressá-los em prosa a quem ouve com empatia, recuperando a nossa poesia, é o que de mais próximo podemos chegar de um perdão. E mais efetivo ou profundo.

Para concluir, de forma mais vivida, acrescento que também trabalhei, como perito psiquiatra, no Centro de Observações Criminológicas do Rio Grande do Sul. Ouvindo diariamente aquelas histórias, dois aspectos ainda ecoam como mais gritantes. Um, a infância carente de todos os presos e presas com quem convivi. Outro, a incapacidade de reconhecerem seu crime e contarem direito a sua história.

Em certos momentos, também abracei alguns deles e, hoje, compreendo Drauzio Varella, sem que isso signifique perdoar o crime de sua entrevistada, o que a empatia com a família vitimada por ela não permitiria. Mas não devo atacar quem pensa o contrário. Assim como delinquentes e não delinquentes precisam de carinho e abraço para se relançarem, do que mais andamos precisando, hoje, é de uma hospitalidade, como defendeu um filósofo contemporâneo.

E, para não cultivar inevitáveis sentimentos hostis, diante de quem pensa o contrário, pensarei no Freud que se encantou com o poema do Heine: "Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos - mas não antes de terem sido enforcados".

Ele expressou com um humor e uma inteligência que hoje também fazem falta.

CELSO GUTFREIND

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