sábado, 7 de março de 2020



07 DE MARÇO DE 2020
DAVID COIMBRA

A maior maldição da liberdade

Eu dizia que Nova York era a minha Gramado, quando morava nos Estados Unidos. Para me exibir, claro, mas não era mentira. Nós íamos para a Big Apple com a naturalidade de quem sai de Porto Alegre num sábado, sobe a Serra, bebe um vinho, morde uns chocolates e volta no domingo. Tudo muito fácil. Tomávamos um trem na South Station de Boston pela manhã e, na hora do almoço, estávamos refestelados em frente ao insuperável bife com fritas do Relais de Venise, na Lexington.

Já falei sobre esse restaurante, mas falarei de novo, para gáudio dos amados leitores. É uma espécie de franquia do Relais d?Entrecôte, de Paris. Mas, se você quiser experimentar, não precisa atravessar o Mar Tenebroso: já há Relais no Rio e em São Paulo. Eles servem um único prato: entrecot (óbvio) com salada e fritas. O segredo está no molho, verde, denso e, ao mesmo tempo leve, algo com ervas e mostarda, suponho. Você pergunta o que há naquele molho e eles não dizem nem se estiverem sob a tortura das mil maneiras, a pior de todas as torturas, criada, evidentemente, pelos chineses.

Eu, por mim, iria ao Relais todos os dias, mas a Marcinha não - mulheres gostam de novidades, e Nova York é cheia de novidades.

Aí é que está: Nova York tem muitas opções. Você caminha pela rua e para onde olha há algo para ver. Seus sentidos são atraídos por cores, sons e belezas que só existem lá em tamanha abundância. São muitas coisas para ver, tocar, sentir, comprar e provar. É uma cidade intensa. Mais do que tudo, intensa.

A questão é que a diferença entre a sanidade e a loucura é, justamente, a intensidade. Porque pedaços de loucura todos temos. O louco, porém, não tem apenas um pedaço: ele é intenso.

Nova York é assim. É tão vibrante, tão repleta de tudo, tão intensa, que se torna meio louca. Nós íamos passar dois ou três dias em Nova York e, quando chegávamos de volta a Boston, eu suspirava:

- Ah, que saudade que estava sentindo da paz?

Sentia-me aliviado ao chegar a Boston e mais ainda à "town" onde morava, Brookline, um lugar idílico, com casinhas de madeira, ruas margeadas por árvores e passarinhos cantando no começo das manhãs e no fim das tardes.

Então, afundado na poltrona da minha casa, no momento em que relaxava do frenesi nova-iorquino, pensava que havia entendido o que anda acontecendo com o mundo. Essas explosões de insatisfação nas ruas, esses ataques e contra-ataques nas redes sociais, essas brigas de grupos de WhatsApp, essa mania que as pessoas têm de julgar, de criticar, de condenar e de "cancelar" o outro, essas tantas angústias que causam depressão, estresse, síndrome do pânico e infarto, tudo isso é produto do excesso de possibilidades.

A maior maldição da liberdade é que ela nos obriga a fazer escolhas. É horrível ter de optar, é horrível estar diante de muitas ofertas e precisar ficar com uma delas. Mil canais de TV a cabo, mil formas de se informar, mil dietas, mil eventos, mil restaurantes. A abundância de ofertas do mundo de hoje gera angústia, porque há tanto de tudo que a festa parece estar sempre em outro lugar.

A simplicidade, como dizia Da Vinci, é o máximo da sofisticação. A ânsia por novas experiências, desafios e aventuras pode ser excitante, mas também pode ser bem estressante. Melhor tomar uma boa decisão, ficar com ela e acalmar a mente. Se abrir um Relais perto da minha casa, é lá que irei todos os dias.

DAVID COIMBRA

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