sábado, 7 de março de 2020



07 DE MARÇO DE 2020
DIA DA MULHER

ANJOS em voo

PARA MARCAR ESTE 8 DE MARÇO, ZH CONVIDOU DUAS ESCRITORAS GAÚCHAS DE GERAÇÕES DISTINTAS PARA REFLETIREM SOBRE A CONDIÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE ATUAL
Sempre que o pessoal me pede para falar da tal condição feminina, eu tento me esquivar. Acho difícil dizer qualquer coisa que valha a pena: quando me dou conta, lá estou eu bradando obviedades contra um sistema tão velho, tão carcomido e tão mofado que nem sei como não ruiu sob o peso de própria decrepitude.

Só que, quanto mais caquética essa engrenagem se apresenta, mais parece resistir - daí a necessidade de todos os anos a gente marcar bem marcado o Oito de Março.

Nós, mulheres, estamos sempre contando episódios que, se não forem relatados em detalhes, podem ser sempre enunciados em essência: se a gente fosse homem, teriam nos tratado com mais respeito. É como se fôssemos dependentes da tutela masculina, que também autoriza alguns cavalheiros a total falta de consideração e, em casos de mais prepotência, a sessões de verdadeiro esculacho.

Por mais que o machismo e a misoginia tenham passado a ser sinônimos de estupidez e de boçalidade, essas duas porcariazinhas - machismo e misoginia - persistem dentro da sociedade como um tique nervoso, um cacoete que se manifesta quando a gente menos espera.

Claro que o Rio Grande do Sul está na vanguarda desse atraso, valham-nos os céus, mesmo que, em termos de progresso humano, essa pegada que faz da mulher uma coisa de segunda categoria em nada ajude e, em termos de progresso econômico, atrase e puxe para trás.

Mas o que eu ia dizendo. Falar de ser mulher e dessa esquisita e insistente situação de rebaixamento continua sendo difícil, mas decidi não mais me esquivar de falar. Se a gente consentir em ficar quietinha, cairemos todos de quatro e sairemos pastando.

Não é não, violão.

Caren Ane Rhoden
Autora de "Deserto de Sal" e "Fio"

Falar sobre mulheres, hoje, envolve pensar de modo complexo sobre todos os posicionamentos e situações polêmicas, mas envolve, também, lidar com dados práticos sobre o seu cotidiano. Se olharmos os dados do IBGE, notamos que a mulher ainda luta para atingir segurança e espaço na vida pública. Em 2019, foram mais de 37 mil ameaças e 97 feminicídios consumados (que é a expressão máxima do preconceito contra a mulher) no Rio Grande do Sul. E ela também mantém a jornada dupla, trabalhando fora e dentro de casa, recebendo menos do que homens, assim como sendo maioria no cuidado da casa e dos filhos. Contudo, a mulher não está ou não deveria estar sozinha.

O debate sobre sua condição é crescente durante o século 20 até hoje, atingindo um ponto em que o que antes ficava restrito à tradição oral, passada de mulher a mulher, na família se torna um tema social. Com o passar do tempo, a mulher, em diferentes áreas, foi e vai demarcando sua presença, elaborando sua bagagem e reparando uma lacuna milenar. Mas a situação política é atravessada por posicionamentos conflituosos em relação ao que seria ser mulher, quais seriam os interesses e quais os direitos que ela tem.

Nessa dimensão, notamos que essa luta cultural não é instantânea ou linear, mas prolongada e que necessita de debate e honestidade intelectual para se construir. O medo de situações ocultadas, antes, pela vergonha e o silenciamento, gera pânico. A condição da mulher hoje é, mais do que nunca, a condição da coragem. Ter consciência de si e de sua trajetória histórica pode ser o embasamento para um futuro mais justo, bem como fonte de embates com quem acredita, mesmo usufruindo das conquistas desse pensamento, que a mulher deve retornar ao seu lugar de anjo do lar.

Como escreveu Virginia Woolf, é muito mais difícil matar um fantasma do que matar uma realidade. Esse fantasma, de anjo do lar, bondoso e que busca satisfazer as necessidades de todos, menos a sua, colocando-se como subalterno em sua própria realidade, esse anjo que, em 1931, quando a escritora leu seu artigo - que já era antigo - falando de sua experiência, pode ser percebido em cada uma, não como vitimização, mas como impulso para mudança. Cisgênero ou transgênero, em sua plenitude de ações, desejos e escolhas (uma mulher morre a cada dois dias por aborto inseguro), seja trabalhando, decidindo sobre seu corpo ou saindo à noite, cabe lidarmos com uma sociedade ainda embrionária na busca por igualdade.

CÍNTIA MOSCOVICH

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