sábado, 8 de janeiro de 2022


08 DE JANEIRO DE 2022
ELÓI ZORZETTO

Falar e ouvir

Entre as infinitas características humanas, algumas tornam as pessoas particularmente especiais. Uma delas é a capacidade de se expressar. Muitos falam ou escrevem com uma facilidade incrível de ordenar ideias e conceitos. Na medida em que avançam as descobertas nos convencemos de que o cérebro é um admirável e complexo sistema criativo. O cérebro provou já ser quase perfeito antes mesmo do ser humano começar a se expressar através da fala. Ninguém sabe ao certo quando os humanos começaram a falar, mas todos sabemos da importância que esse modo de comunicação tem. O doutor em linguística Aldo Bizzocchi diz em seu livro O Universo da Linguagem que "a linguagem verbal articulada propiciou, sobretudo nos últimos 10 mil anos, um avanço cultural mais rápido do que o verificado nos vários milhões de anos anteriores" e que " a capacidade de nos expressarmos com palavras, de sermos compreendidos e de escrever, é o principal salto evolutivo da nossa espécie".

A transformação do cérebro é incontestável, e o fato de conseguir fazer com que as pessoas falem e escrevam torna nossa riqueza cultural um patrimônio propagador de conhecimento exponencial. Quanto mais armazenamos informações, mais nos capacitamos. Nosso cérebro avançou tanto que foi capaz de criar até inteligência artificial, um sonho científico não faz muito tempo. A compreensão verbal e a motricidade da fala nos dão competência comunicativa, permitem que expressemos o pensamento lógico e o planejamento de ações. Esse intrincado processo parece ser mais simples para uns do que para outros.

Quem já não passou pela experiência de perceber e entender determinadas situações e não conseguir traduzi-las como gostaria? Por alguma razão não encontramos meios para transformar em palavras o que sentimos. Nosso raciocínio não alcança o ordenamento que gostaríamos de manifestar e a comunicação falha. Se mesmo assim tentamos, o resultado pode não ser o esperado.

Quem fala ou escreve bem tem a sorte de unir várias características particulares. São pessoas que montam um complicado quebra-cabeça encaixando as peças como se conhecessem individualmente seus formatos em detalhes, sejam elas simples ou anatomicamente complicadas. O raciocínio e a fala são perfeitamente sincronizados. O problema é desenvolver tais aptidões.

Todas essas capacidades podem não resultar só em boas ações. As imperfeições também aparecem na eloquência das pessoas. Como o ser humano é criativo, tanto para o bem quanto para o mal, muitas vezes arquiteta e manipula o sentido das palavras com o objetivo de tentar mudar o rumo de um fato ou obter algum tipo de vantagem sem, aparentemente, ter dito o que disse. Claro que na outra ponta também existem os que ouvem o que querem e não exatamente o que foi dito.

Falar e escrever nos permite mergulhar num universo que de outra maneira seria praticamente impossível. Escritor e leitor, narrador e ouvinte, podem se conectar intelectualmente, mesmo que não sejam contemporâneos. De que outra maneira saberíamos que para Fernando Pessoa "tudo vale a pena quando a alma não é pequena", ou que para Carlos Drummond de Andrade "ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade", ou ainda, que "a vida é uma sucessão contínua de oportunidades" na visão de Gabriel García Márquez?

O cérebro ainda deverá surpreender muito no futuro, especialmente no longo prazo. Mas hoje, no cotidiano, observamos que muitas pessoas que se expressam bem não são necessariamente intelectuais ou especialistas em oratória. Elas acumulam qualidades que as tornam indivíduos de alma plena. Qualquer coisa que digam é boa. Não é por acaso que são as que mais amamos. Têm bom coração, são coerentes, sintonizadas, engrandecedoras do nosso espírito. A fala carinhosa de alguém próximo, de quem gostamos, é norteadora, prazerosa, nos toca, é um remédio. 

Quanto bem nos faz ouvir nossos amigos, filhos, irmãos, pais, nossos queridos avós, mesmo em pensamentos. Como é bom compartilhar a experiência, as dores, os medos, os sonhos e as vitórias. Sempre nos sentimos muito bem ao ouvir os que nos acrescentam e, com seus sentimentos, nos acarinham, nos afagam, nos restabelecem, mesmo que, às vezes, digam o que não gostaríamos de ouvir. Bons argumentos sempre nos fazem bem, nos fazem evoluir, nos enriquecem e nos dão esperança. Como é bom falar e, principalmente, saber ouvir.

*O colunista David Coimbra está em férias - ELÓI ZORZETTO

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