sábado, 24 de agosto de 2024


A multiplicidade de agressões físicas ou emocionais impostas a pessoas comuns sem justificativa visível é impressionante, e na maioria das vezes, a julgar pelas aparências, francamente imerecida.

Durante a atividade médica, várias vezes deparei com pacientes da minha idade vivendo situações dramáticas, enquanto eu, por razões fortuitas e desconhecidas, seguia meu rumo ileso, livre para aproveitar a ventura das melhores escolhas.

Com o passar dos anos, cresceu em mim o senso de gratidão por continuar sendo poupado, e algumas vezes respondi à pergunta de pacientes, "Que idade o senhor tem?", com a sensação estranha de que por trás da inocente curiosidade da questão estivesse implícito o questionamento queixoso de "E o que eu fiz para merecer?", o que só aumentava a angústia de não ter como responder por quais critérios somos poupados ou selecionados para as agruras do sofrimento.

As tragédias, com vestimentas variáveis, acompanham a vida do médico, e às vezes com tal intensidade que desafiam nossa predisposição saudável de deixá-las na porta do hospital, e disfarçando felicidade acabamos levando-as para o desassossego das nossas madrugadas.

Doenças crônicas que implicam em vias crucis alongadas e lesões incapacitantes definitivas lideram o pelotão do infortúnio, especialmente em pessoas que, pela juventude, têm maior noção de vida desperdiçada. Nesta condição, nada é mais importante para a sobrevivência emocional da vítima do que a confiabilidade do seu manto amoroso, se contrapondo à trágica junção da tristeza da doença incapacitante com a atrocidade do abandono.

Duas questões são difíceis de dimensionar: qual o limite do sofrimento tolerável? E quais consequências trará para a vítima desavisada?

A capacidade humana de sofrer é ilimitada, e os pacientes, com frequência imprevista, encontram forças que ignoravam ter. Mas do ponto de vista psiquiátrico, "a tragédia por si só é sempre transformadora, para melhor (resiliência) ou para pior (depressão e impulsividade). Em ambos os casos demonstra quem somos em nossa intimidade".

Algumas vezes, a vítima, sentindo-se fera ferida, comporta-se como tal, espalhando ressentimento no seu entorno, sem nenhuma preocupação que na sua ânsia de revanche indiscriminada possa estar magoando pessoas completamente alheias às causas do seu sofrimento, e ignorando que projetar amargura ao redor de si não faz mais do que chamar de volta a amargura multiplicada. Esse círculo vicioso em crescimento exponencial tende a tornar ainda mais amarga a vida do sofredor.

Felizmente, algumas pessoas, com espírito superior, substituem a revolta por iniciativas sociais que buscam poupar famílias desconhecidas de igual sofrimento, e, sem perceber, estão reafirmando a esperança no ser humano e liberando vagas no purgatório. _

J.J. CAMARGO 

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