sábado, 24 de agosto de 2024


24 de Agosto de 2024
MARTHA

A audácia de improvisar

Ou pior. Ele bate boca com você. Te acusa. Não consegue dar sequência natural à conversa, que tomou um rumo que ele não esperava. O homem se sente traído. Se exalta, colérico. E você não entende o que está acontecendo.

Pense numa peça de teatro, onde os atores têm seus textos decorados. Você fugiu do script e improvisou. Pânico no palco, concorda?

Um dos grandes problemas da convivência - e são tantos - é quando alguém simplesmente não convive, e sim "se apresenta". O entorno, para ele, é como se fosse uma plateia. Às vezes, esta pessoa entra em um grupo novo e, inteligentemente, se cala, não vai assumir o microfone diante de estranhos, ao contrário, será um ouvinte gentil, mas se está entre os íntimos, ora, o show tem que continuar, está em cartaz há anos. Eu! Eu! Eu! Um stand-up que arranca risadas quando é com o Fábio Porchat, mas se é seu namorado, seu marido ou seu pai na ribalta, é menos divertido.

Você aplaude, porque é educada. E eles são tão legais. E você anda tão exausta.

Até o dia que você, em vez de aplaudir, dá uma situada. Uma cutucada. Um alto lá. E derruba a bilheteria.

Psicanalistas sabem muito bem o nome desta doença que faz com que algumas pessoas necessitem desesperadamente de validação e se agarrem ao papel de protagonistas, escrevam o texto e dirijam o espetáculo, confiando que os coadjuvantes estarão bem ensaiados. Coadjuvantes? Os filhos. Cônjuges. Irmãos.

Eles não são bobos de estender a performance aos amigos, conhecidos, clientes. Não têm controle sobre os periféricos. Estes podem dizer o que quiserem que serão escutados com polidez e simpatia. Mas os afetos mais profundos têm obrigação de reverenciá-los e pedir autógrafos no final. Ou o encontro desanda. A relação desanda.

Tudo porque você teve a audácia de improvisar. De macular a conversa dentro do carro, de estragar o jantar em que ele apresentava o seu melhor. Você não reverenciou o dom do artista. Você achou que o que você sentia tinha importância também. Por sua petulância, merece a expulsão do paraíso.

O triste da história? Eles nem percebem. Já trocaram de plateia. Lembre-se: o show tem que continuar. 

MARTHA

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