sábado, 9 de novembro de 2024


09 de Novembro de 2024
MARTHA MEDEIROS

Etarismo flexível

Na época em que assistia shows inteiros em pé, na pista do estádio, como aconteceu nas turnês de Paul McCartney, Rolling Stones e Roger Waters, eu tinha de 17 a 56, dava no mesmo. Hoje, ficar três horas em pé no meio da multidão é uma coisa que não aguardo com ansiedade. A última vez foi ano passado, vendo Titãs, ao ar livre, sob uma chuva torrencial: iniciei o show com 18 e encerrei com 110.

Diante de um cálice de vinho, sou maior de idade. Diante de dois, estou apta a dar conferências. Com um cachorro-quente nas mãos, me lambuzo com a mostarda e cai meu primeiro dente de leite. Assim que coloco os pés em um aeroporto, tenho 35. Ao embarcar no avião, 32.

Ao desembarcar em outro país, depois de um longo voo noturno, retorno aos meus 63, e com eles permaneço até que eu passe pela fila da imigração, pela esteira da bagagem e pelo trajeto até o hotel. Depois de me instalar, rua. Volto aos 30 e poucos.

Ao me sentar em uma cadeira de dentista, tenho oito anos. Diante de um primeiro beijo, 15.

Com febre e dor no corpo, 96. Reunida com as melhores amigas do colégio, todas nascidas em 1961, temos no máximo, 19 - quem escutar nossas risadas por trás das paredes confirmará. Às vezes, engatamos conversas adultas, aí encostamos nos 37.

Se o encontro se der apenas entre mim e uma delas, voltamos aos 63. Amigas íntimas, em dupla, trazem sua vivência plena para o centro da mesa. Quando rezo, 10 anos. Quando transo, idade é o que, mesmo?

Dentro do cinema, na plateia do teatro, devorando um livro, tenho 26, 88, 32, 5, 49, 71, 104, 11.

Quando treino, minha idade depende do peso de cada haltere e de cada caneleira, e de quantas vezes precisarei repetir os exercícios. Vou dos 25 à morte. De manhã, sou sempre mais jovem do que à noite.

Quando sofro, envelheço. Aí escrevo algo - e compenso. Se vier a publicar, congelo o tempo. Como mágica, leitores de todas as idades passam a ter comigo a mesma história para contar.

Se entra por WhatsApp uma mensagem muito aguardada, fico excitada como se fosse meu aniversário - que, aliás, celebro com entusiasmo adolescente, não importa o número de velas sobre o bolo.

Triste, sou idosa. Alegre, mais gaiata. Sorrir sai mais em conta do que harmonização facial: suprime, no ato, uns oito anos da minha certidão de nascimento. Neste instante, estou sentada (63), escrevendo (49), com planos de viajar (35), a fim de me apaixonar (17) e acreditando no futuro (12), mesmo ciente de que o mundo entortou e os problemas não irão sumir (63).

São 10h30min da manhã e sou mais moça do que ontem. _

MARTHA MEDEIROS

09 de Novembro de 2024
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA

Donna Beauty Pompéia - Tudo azul no Sextou das Gu

Somos instantes

O outubro foi rosa, mas o novembro é azul! E para reforçar os cuidados com a saúde, as Gu e a Pompéia se unem para um look todo blue.

Aliás, o azul será o protagonista na estação mais quente do ano, sendo que o tom claro estará presente nas tendências, representando toda a sua serenidade, seu romantismo e seu frescor. A dica da consultoria de moda da Pompéia é acrescentar uma tonalidade vibrante, como o laranja e suas variantes, que podem estar presentes em acessórios, dando o contraste na produção. Quer um truque de styling para looks monocromáticos? Utilize um lenço com as cores complementares na cintura.

Confira mais looks nas lojas, no site lojaspompeia.com.br e no aplicativo. Visite a Pompéia no Shopping Iguatemi (Av. João Wallig, 1.800, 1º andar, de segunda a sábado, das 10h às 22h, e aos domingos, das 12h às 20h) e conte com o serviço de consultoria de moda gratuito, disponível em todas as lojas. _

Essa expressão me pegou em cheio à época do lançamento do livro homônimo da gaúcha Claudia Sehbe. Oito anos depois, estou aqui revisando as páginas de Donna encantada com uma coincidência. O tema do espetáculo que apresentamos na reportagem de capa é muito semelhante ao da crônica de Martha Medeiros. Sem querer, vamos promover em dose dupla um papo de qualidade sobre o tempo - e como ele nos toca como mulheres. Nota mental sobre "coincidências": grandes vozes unem-se em assuntos necessários.

Nos dias 13 e 14 deste mês, dentro da programação do Palco Giratório, a peça Idade é um Sentimento tomará o Teatro da Santa Casa com a voz, o movimento, o roteiro e as experiências de quatro mulheres potentes da nossa cena cultural, que receberam a repórter Letícia Paludo durante um dos ensaios finais.

A atriz Gabriela Munhoz, a diretora Camila Bauer, a cantora e performer Paola Kirst e a coreógrafa Carlota Albuquerque mostram que a vida não tem roteiro. É cheia de "e se?", assim como a dinâmica da montagem que, torcemos já, ainda vai alcançar um grande público.

Ao final, ou no começo se você é daquelas pessoas que adoram começar a leitura pela contracapa, temos nossa certeira Martha Medeiros, que fala de sua idade flutuante, guiada, vejam só, por sentimentos. Aquela história, meninas: a idade do joelho nem sempre coincide com a do brilho no olho de uma nova paixão. O importante é viver todos os nossos instantes. _

Beleza - Cuidados corporais

Tododia Jambo Rosa e Flor de Caju é o novo lançamento da Natura, desenvolvido para realçar a beleza das peles pretas e pardas. Com ingredientes como Niacinamida, Pantenol, Óleo de Gergelim e Vitamina E, a linha traz cinco produtos - esfoliante, óleo em creme, manteiga uniformizadora, geleia iluminadora e creme corporal. Disponível no e-commerce da marca (natura.com.br) a partir da segunda quinzena de novembro.

Novo ponto  - Bazar de noivas

Atuando na moda circular de vestidos de noivas desde 2015, o I Do Bazar inaugurou uma nova sede em Porto Alegre (Av. Carlos Gomes, 1.155/sala 601), oferecendo modelos de estilistas internacionais como Vera Wang, Milla Nova e Rosa Clará, e marcas gaúchas como Sandra Ferraz, Luiza Fichtner e Juó Couture. Além de peças - usadas apenas uma vez - de diversos estilos, manequins, formatos e valores, há possibilidade de customização e personalização no atelier. Conheça mais no perfil @ido.bazar.

Palestra - Em Caxias do Sul

No dia 21 de novembro, a psicóloga, enfermeira e sexóloga Claudette Seltenreicht realiza a palestra "Empoderamento Feminino e Sexualidade", em que abordará como superar a falta de orgasmo com autoconhecimento e exploração do corpo. O encontro ocorre às 19h, no City Life Centro Comercial (Rua Moreira César, 2.650), em Caxias do Sul. As inscrições podem ser feitas no WhatsApp: (54) 99114-2172.

Leilão - Em prol do RS

Em parceria com o Instituto Lojas Renner, o artista Filipe Jardim promove até o dia 21 de novembro um leilão beneficente de obras exclusivas para ajudar as vítimas da enchente no RS. Toda renda será destinada às iniciativas do Instituto. Os lances começam em R$ 1,5 mil e podem ser acessados na plataforma Santayana Leilões.



09 de Novembro de 2024
+ SAÚDE

+ SAÚDE

- Temos que ler estudos publicados toda a semana, porque estão saindo muitas coisas novas. O mundo inteiro pesquisa sobre o autismo e tenta desenvolver novas terapias e novos testes diagnósticos - afirma Simone Sudbrack, professora da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

O diagnóstico do autismo é clínico. Ou seja, tem base na observação e análise dos comportamentos do paciente. Questionários a exemplo do MCHAT podem ajudar na coleta de informações relevantes para identificar o transtorno. Ainda assim, inovações tentam simplificar esse processo e diminuir o risco de diagnósticos incorretos. Carlos Gadia, neuropediatra gaúcho formado pela UFRGS em 1980 e especializado em TEA que atua nos Estados Unidos há mais de 40 anos, conta que o psicólogo brasileiro Ami Klin está prestes a mudar esse padrão:

- Foi aprovada, em setembro do ano passado, uma técnica, que agora é reconhecida pelo Food and Drug Administration (FDA), de diagnóstico de crianças entre 16 e 30 meses de idade baseada unicamente no foco ocular. O exame apresenta uma série de vídeos para essa criança e o computador rastreia 120 vezes por segundo cada tomada do vídeo para ver onde essa criança estava focando o seu olhar - explica Gadia.

Os achados são comparados com o rastreamento ocular de crianças típicas (sem o transtorno) da mesma idade. A partir disso, é possível fazer um diagnóstico em minutos. Para ele, inovação pode ajudar a agilizar a identificação do TEA em crianças.

Algoritmo para o diagnóstico

Simone cita uma inovação que pode ajudar a aumentar a precisão do diagnóstico, auxiliando a parte observacional. Trata-se de um algoritmo desenvolvido recentemente por pesquisadores brasileiros e alemães.

- Através da função do cérebro, do desenho da sinapse, o algoritmo compara um cérebro típico e um atípico. Os pesquisadores conseguiram mapear cérebros de mais de 200 pessoas com comportamento típico e atípico. Crianças, adolescentes e adultos. E, usando esse algoritmo na ressonância funcional, eles conseguem ver que há diferenças e, então, auxiliar no diagnóstico.

Inovações para o tratamento

O tratamento do TEA é outra área que recebe bastante atenção dos pesquisadores e especialistas. Entre as novidades disponíveis, Gadia fala sobre uma medicação que não tem o objetivo de tratar os sintomas do TEA, mas sim desligar genes que podem causar outras doenças, como a Síndrome de Rett - distúrbio raro do neurodesenvolvimento causado por problemas genéticos.

- A primeira medicação a ser aprovada pela FDA, que se chama Trofinetide, é para a Síndrome de Rett, que é uma síndrome severa, que afeta basicamente meninas, e está associada ao autismo. Já é um caminho que nós estamos trilhando.

O neuropediatra entende que as inovações para o tratamento do TEA, principalmente as relacionadas a medicações, pode ser longa, uma vez que envolve as indústrias farmacêuticas e muito dinheiro para pesquisas e testes. Novos exames, algoritmos e medicamentos inspiram o neuropediatra, que olha para o futuro com expectativas:

- Todas essas novidades mudam aquela ideia de que "infelizmente não há nada a ser feito, essa criança não vai ser nada na vida". Poder mudar isso, para algo que ainda está muito longe, abre uma janela de esperança de que, quem sabe, a história vai ser diferente. Isso é uma das coisas mais mágicas.

"Siga a Ciência"

- Estamos vivendo uma situação no mundo inteiro, em que existe, ao contrário de 30 anos atrás, muita informação sobre o autismo. Infelizmente, nem sempre essa informação é de qualidade. Fica difícil para as famílias, e, às vezes, até para os próprios terapeutas ou profissionais de saúde e educação que não têm tanta experiência, distinguir o que é de qualidade e o que não é - pontua o neuropediatra.

No ano passado, a primeira edição, com o tema Dia Global do Autismo, contou com profissionais e famílias dos Estados Unidos, do Brasil, de Portugal e da Angola. Neste ano, presenças internacionais também estão confirmadas. _

Yasmim Girardi

09 de Novembro de 2024
J.J. CAMARGO

Como historicamente nada acontece por acaso, precisamos, mais do que identificar culpados na sociedade, onde sem dúvida está ocorrendo uma deterioração de valores elementares de civilidade, assumir a nossa inegável responsabilidade pela depreciação da empatia, da qual a compaixão é o suporte histórico da reverência espontânea com que o médico sempre foi tratado. Atribuir o descalabro das relações entre médico e paciente, especialmente na saúde pública, ao fato de que "os tempos mudaram" seria admitir que o ser humano está em franca decadência, o que é uma simplificação preguiçosa e inútil.

Assumindo que esta relação se baseia em troca de delicadezas e que o afeto mora nos pequenos detalhes, parece racional revisar algumas situações específicas em que poderíamos ser melhores, dando-nos a partir daí o legítimo direito de criticar o sistema.

Um dia desses, atendendo o ambulatório de cirurgia torácica pediátrica, comentei com uma mãe que me encantara com seu garotinho, super à vontade e sorridente. E ela me advertiu: "Ponha um avental e o senhor vai ver a transformação". Alguém trajando branco tinha subvertido a relação médico/paciente e plantado naquele pingo de gente uma aversão gratuita e cruel, que ele carregaria por um tempo injusto.

Um jovem acidentado, com inconfundível cara do medo, aguardava numa maca para ser atendido no meio de um turbilhão de gritos, gemidos e choro, numa convergência casual de vários traumatizados. Quando esboçou uma reclamação pela espera, um atendente sintetizou: "Tenha paciência porque você é o que tem menos chance de morrer". Incrível imaginar que aquela frase pudesse acalmar alguém que saíra de casa flamante e, uma hora depois, tinha descoberto que a morte, impensável naquela idade, se tornara uma possibilidade real. A pretensão estúpida de acalmá-lo certamente alimentaria muitos pesadelos no futuro.

Uma senhora nonagenária com um câncer de intestino, com disseminação abdominal grosseira e com expectativa de morte em poucas horas, foi transferida para uma UTI extremamente qualificada, obrigando-a a conviver no ocaso de uma vida riquíssima de afeto com máquinas barulhentas e rodeada de pessoas boas, mas emocionalmente descomprometidas. Menos de quatro horas depois, a natureza generosa abreviou-lhe o martírio, mas a insensibilidade absoluta roubou-lhe a inestimável oportunidade de morrer de mãos dadas com quem de fato iria sentir a sua falta.

Esses três pacientes teriam sobrevivido ou morrido com ou sem compaixão, mas isso não pode de nenhuma maneira justificar a falta de sensibilidade, que tantas vezes é confundida com objetividade, mas que nunca será reconhecida como virtude quando imaginarmos que o alvo, independentemente da circunstância, poderia ser qualquer um de nós. 

J.J. CAMARGO

09 de Novembro de 2024
COM A PALAVRA - André Medici

COM A PALAVRA

Doutor em História Econômica pela USP, economista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial em Washington (EUA) entre 1996 e 2020. Consultor, inclusive, da ONU

"Precisamos mudar a organização do Sistema Único de Saúde"

O financiamento da saúde é há décadas tema de estudo de André Medici. No seu currículo, está a participação na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, é consultor internacional para organismos como Banco Mundial, BID e ONU.

Vinicius Coimbra

O NHS (sigla em inglês para o Serviço de Saúde Nacional do Reino Unido), que serviu de inspiração para o SUS, tem enfrentado crises recentes. Há reclamação de médicos e insatisfação dos usuários, semelhante ao que ocorre no Brasil. O que esses dois cenários representam em relação à ideia do financiamento público da saúde?

O sistema financiado com recursos públicos enfrentará instabilidades. O NHS continua sendo muito bom, mas não teve capacidade de renovação. A crise pandêmica deixou o sistema em uma situação difícil, porque ele não estava preparado para receber um grande número de pacientes - a Inglaterra foi um dos países mais afetados pela covid-19. Temos de considerar o envelhecimento da população também.

O Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) também influenciou neste cenário. Há a chegada de imigrantes, que podem ter outros tipos de necessidades. Além disso, a situação econômica da Inglaterra não é boa. Se não há recursos, ocorre uma crise na saúde, com a perda de profissionais e desistência de carreiras para o sistema; o atendimento piora e as filas aumentam para os pacientes.

? Podemos relacionar a situação atual do NHS com o presente do SUS?

O SUS também é um bom sistema. Até 2000, teve muitas inovações, uma delas a introdução da saúde da família, que criou a base de atendimento à população que não tinha acesso. Não sofreu tanto com a pandemia, que foi quando mais recebeu recursos. O SUS tem problemas e uma organização diferente da Inglaterra. A base de operação é municipal e a maioria dos municípios brasileiros tem menos de 50 mil habitantes, que, em muitos casos, não têm a capacidade necessária para organizar um sistema de saúde.

Por isso, a prefeitura recebe o dinheiro, não tem capacidade de gerenciar e as pessoas que precisam de níveis de complexidade maiores vão para municípios vizinhos. É o que ocorre na região metropolitana de Porto Alegre, por exemplo. Isso faz com que a prefeitura receba o recurso para pacientes que são tratados na Capital. Assim, você sobrecarrega determinados sistemas e deixa outros sem a capacidade necessária de dar atenção.

Qual é a melhor maneira de organizar o SUS?

É um modelo de regionalização, mas não pode ser baseado em municípios, mas sim em regiões de saúde. Primeiro deve existir uma boa atenção primária (municipal) e, depois, se precisar, o atendimento especializado (regional). O paciente, por fim, deve voltar para o centro de saúde do seu município de origem. Também deve haver um sistema de prontuário médico eletrônico que consiga mapear pacientes, com a história clínica dele.

Melhorar o SUS passa apenas por mudar como ele funciona ou é verdadeira a ideia de que faltam recursos para a saúde?

Antes de falarmos em investimentos, precisamos mudar a organização do SUS. O sistema precisa de uma divisão de trabalho. Uma pessoa com um problema simples de saúde deve resolver isso na atenção básica, e só depois ir para a média e alta complexidade. Mas não é o que ocorre: no Brasil, você não atende bem em nenhuma etapa. Isso faz com que as pessoas busquem uma emergência hospitalar quando não é o caso.

Observamos esses problemas no SUS em meio ao envelhecimento da população. No RS, os idosos representarão 40% da população em 2070. Como enfrentar esse cenário?

É uma questão mundial e foi uma das causas do agravamento da crise do NHS. Isso ocorre porque você estreita a base de financiamento do sistema e não tem estruturas capazes de tratar um conjunto de grandes pessoas. A solução é aumentar a promoção, a prevenção e fazer com que as pessoas tenham uma vida mais saudável. Ou seja: é necessário que a população mantenha hábitos saudáveis desde cedo.

O envelhecimento brasileiro ocorre em meio ao subdesenvolvimento, ao contrário dos países ricos. Qual é o tamanho do nosso prejuízo nesse contexto?

A diferença é muito grande. Países que ficam ricos antes de envelhecer conseguem enfrentar os custos da velhice. O Brasil é um país que não enriqueceu e não terá os recursos para enfrentar o envelhecimento. Nunca vamos conseguir gastar 5 mil dólares por pessoa, como faz o NHS, ou 17 mil dólares, como fazem os Estados Unidos. Não chegamos a mil dólares por pessoa. Por isso, o Brasil precisa de soluções racionalizadoras para fazer com que a promoção, a prevenção e a atenção médica sejam mais eficazes.

A forma de fazer isso é por meio da interoperabilidade dos registros eletrônicos, que fazem com que a informação seja utilizada para administrar a gestão da saúde.

O atendimento particular tem ganhado espaço no país por conta dos problemas do SUS. É uma saída para melhorar o setor?

Vejo o privado como um complemento ao sistema público. O SUS é importante porque possibilitou o acesso à saúde a uma parte da população que não tinha acesso. Nas capitais, em torno de 50% da população está coberta por seguro de saúde. Na média do Brasil, são 25% que estão cobertos, os outros 75% são SUS. Isso ocorre porque há regiões rurais onde os seguros não estão disponíveis. 


09 de Novembro de 2024
ANDRESSA XAVIER

O sonhador da Restinga

O Éverton tinha uns nove anos. Morava na Restinga. Observava o incansável esforço do pai para tentar finalizar a residência da família. Sempre surgiam outras necessidades. A conta não fechava e a obra ficava em segundo plano. Ele também via a tia de 40 anos, que morava nos Estados Unidos, finalizando a construção de uma casa no mesmo bairro. Ela vivia bem no país e ainda sobrava dinheiro para investir aqui. Desde aquele momento, o guri teve certeza de que queria viver o sonho americano.

Na escola, ouvia a risada dos amigos e professores, que debochavam da pretensão dele. Sem dar bola pra isso, o sonho foi sendo alimentado. O plano era conseguir dinheiro para viver fora e ainda mandar recursos para a família no Brasil. Um pré-requisito nos relacionamentos era saber se a possível namorada aceitaria entrar no que poderia ser uma fria. A Daniela topou. Embarcaram com o filho, na época com pouco mais de um ano, com a cara e muita coragem.

Conheci o Éverton em abril desse ano, quando estava em férias nos Estados Unidos. Ele me mandou uma mensagem pelo Instagram se oferecendo para fazer nosso transfer até o aeroporto. Dois dias depois, lá estávamos na caminhonete gigante com quase uma hora pela frente de conversa até chegar ao destino. Até comprar aquele carrão ele e a esposa choraram muitas vezes tentando esconder do Paulo, a criança que crescia longe do restante da família, a saga que estavam vivendo.

Ele entregou comida andando de bicicleta na neve, trabalhou na construção civil, lavou louça, fez faxina. O balanço era de muita frustração e pouco dinheiro para sobreviver em um país em que mal sabiam o idioma básico.

O Paulo, agora com 10 anos, cresce em uma realidade bem diferente. O inglês dele é muito melhor do que qualquer um de nós, já que cresceu no país das oportunidades. Eles moram em um apartamento no Queens, bairro mais afastado de Manhattan, mas que dá boas condições de vida à família. A frota de cinco carros e mais os motoristas parceiros garantem uma vida boa para os três, mas também para os familiares no Brasil. Foi para isso, afinal, que fizeram o sonho se realizar.

O sonho americano é dividido entre milhares, talvez milhões de pessoas pelo mundo. Nem todas conseguem chegar lá. Umas ficam pelo caminho, outras acabam voltando depois de ver que aquilo se tornou um pesadelo, outros tantos acabam até em abrigos para sobreviver. O porto-alegrense da Tinga fez acontecer. Multiplicou. Comprou casas e terrenos no Brasil. Eles foram resilientes. São. Não imagino que seja fácil viver longe da família e, me disse ele, do xis e do churrasco. Além da quadra do Estado Maior da Restinga.

Aproveitei a cobertura da eleição americana e entrevistamos o Éverton em plena Times Square, no Gaúcha Atualidade. Ele se emocionou e nos emocionou. Contou que o filho foi conviver com a avó só agora, numa visita que ela fez a Nova York. Foi o suficiente para se apaixonar por ela, como são as relações de netos com os avós. A distância foi o preço. Mas ele quer voltar: "Não quero ir só para enterrar meus pais", refletiu. O sonhador da Restinga segue sonhando. _

ANDRESSA XAVIER


09 de Novembro de 2024
MARCELO RECH

Da frustração ao ressentimento

O maremoto trumpista de 2024 levantou uma série de semelhanças com o bolsonarismo do passado, mas também foi além. A eleição de Donald Trump e as dificuldades de uma candidata que seguiu o manual das boas maneiras políticas antecipam muito do que se verá no Brasil nos próximos anos.

Com a tática em mente, discursos divisivos, ataques abaixo da linha da cintura e, sobretudo, a promessa de resolver os desconfortos desse eleitorado, alguns dos quais politicamente incorretos, encontram em Trumps, Bolsonaros e Marçais os novos paladinos de multidões que não se veem retratadas em candidaturas alienadas daqueles sentimentos mais íntimos. 

A imigração é um exemplo. Esse é um não problema no Brasil, mas causa evidente incomodação a grande parte do eleitorado americano. Em vez de equacionar um problema óbvio, os democratas, e em especial a esquerda do partido, carimbam os que se opõem à imigração ilegal como preconceituosos, elitistas, malvados e por aí vai. A resposta veio nas urnas.

Não precisaria se chegar a um El Salvador para que políticos de todos os matizes finalmente reconheçam e resolvam as angústias mais profundas do eleitor. Do contrário, como identificou o jornal The New York Times, que ao longo dos últimos três anos, auscultou 680 eleitores em 61 pesquisas qualitativas, o que era frustração se transforma em ansiedade e depois em ressentimento. E ele, como se viu, desaguou na vitória acachapante de Donald Trump. _

MARCELO RECH

09 de Novembro de 2024
OPINIÃO RBS

OPINIÃO RBS

Não são números, são pessoas

Uma das características de tragédias climáticas como enchentes e enxurradas é vitimar principalmente a população mais carente. É quem, sem outra alternativa, tem de viver em residências precárias e em áreas de risco. Nos primeiros dias após a cheia de maio, o Rio Grande do Sul chegou a ter mais de 78 mil desabrigados amparados em locais temporários. Gente que teve a casa destruída ou tomada pelas águas e não tinha onde se alojar. Mais de seis meses depois, ainda são quase 1,7 mil afetados vivendo em abrigos e nos dois Centros Humanitários de Acolhimento (CHAs), em Canoas e Porto Alegre.

Por mais que exista o esforço para dar um mínimo de conforto e estrutura aos que seguem sem ter um lugar seu para voltar, a dignidade só será conquistada com uma moradia definitiva. É preciso imprimir maior velocidade aos programas voltados a garantir um teto a esses gaúchos. Não são números. São pessoas com histórias de vida, aflições, sonhos e esperança de dias melhores que seguem à espera do cumprimento das promessas dos governos federal e estadual.

O Executivo federal, pelas palavras do próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se comprometeu a doar casa a todas as famílias enquadradas nas faixas 1 e 2 do Minha Casa Minha Vida que perderam o lar na enchente. A projeção era de mais de 17 mil unidades habitacionais construídas ou doadas pela modalidade de compra assistida. Até o início deste mês, conforme o Painel da Reconstrução da RBS, somente cerca de 400 imóveis foram entregues.

Sabe-se que a edificação de novas moradias é demorada pela necessidade de vencer as etapas burocráticas, assegurar infraestrutura de acesso, energia e água e pelo próprio tempo necessário para a construção das unidades. Mas o programa de compra assistida, em que os beneficiários escolhem um imóvel cadastrado pronto no valor de até R$ 200 mil, já poderia estar mais adiantado. 

A primeira família do Estado beneficiada recebeu as chaves no último dia 31, quase três meses após o início das inscrições. Seria conveniente se a iniciativa, que já contemplou um pequeno número de pessoas em outras cidades, ganhasse mais tração nas próximas semanas. O Piratini, por seu turno, entregou 212 moradias temporárias de 500 prometidas e projeta ter prontas residências definitivas, em um total de 648 unidades, a partir do próximo ano.

Das 1,7 mil pessoas abrigadas em 21 cidades do Estado, conforme balanço da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, mais de 800 estão nos dois CHAs, em Canoas e Porto Alegre, montados pelo Estado e geridos pela Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para migração (OIM). A ajuda especializada é de grande importância para uma melhor estadia transitória. São locais com espaços como áreas infantis, lavanderia coletiva, ambientes multiúso, atendimento médico e segurança, entre outros serviços de facilidades. 

Com a chegada do período mais quente, no entanto, surgem queixas da falta de janelas e aparelhos de ventilação, o que gera desconforto térmico. O governo gaúcho promete melhorias a partir da próxima semana. É o mínimo para amenizar o sofrimento de centenas de pessoas que vivem a angústia de uma espera sem prazo certo para acabar. São trabalhadores, idosos e crianças que não podem ser esquecidos pelo poder público. 



09 DE NOVEMBRO DE 2024
Guilherme Milman - REGIÃO METROPOLITANA

REGIÃO METROPOLITANA

Vítima de acidente na RS-020 em Gravataí, bebê de sete meses morre no hospital. Mariana Vitória Cardoso de Abreu estava internada no HPS de Porto Alegre. O pai, Wellington da Silva de Abreu, 21 anos, morreu no local

A bebê de apenas sete meses, vítima do acidente na RS-020 envolvendo um caminhão e dois carros, morreu na noite de quinta-feira. Ela estava internada no Hospital de Pronto-Socorro (HPS), na Capital. A informação foi confirmada na manhã de sexta-feira pelo hospital.

Mariana Vitória Cardoso de Abreu estava na Ecosport atingida pelo caminhão. Na ocorrência, uma picape Montana também ficou danificada. O pai de Mariana, identificado como Wellington da Silva de Abreu, 21 anos, já havia morrido no local da ocorrência. Já a mãe, de 19, também foi socorrida. Não há informações sobre seu estado de saúde.

Antes de ser transferida para o HPS, a bebê tinha sido encaminhada ao Hospital Dom João Becker, em Gravataí.

Como aconteceu

O acidente foi no km 10 da rodovia, na parada 84. Segundo o Comando Rodoviário da Brigada Militar (CRBM), um caminhão teria invadido a pista contrária e colidido com a Ecosport onde estava a família. Na sequência, ainda havia acertado uma picape Montana. O motorista da Montana também ficou ferido.

O caminhoneiro saiu ileso. Ele deve ser investigado por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. 


acerto das (tuas) contas

Carne volta a subir

Gaúchos, preparem o bolso. A carne voltou a subir, principalmente a de gado. A alta de outubro foi a maior desde 2021 na pesquisa mensal da cesta básica feita pela Dieese, que pesquisa coxão de dentro, de fora e patinho. Lembrando que, naquela época, vivia-se o auge da pandemia, com uma disparada nos preços dos alimentos.

No mês passado, o Dieese captou em Porto Alegre aumento médio de 5,26% na carne em relação a setembro, mais do que o dobro da elevação da cesta básica. Pelo peso do alimento no orçamento familiar e, portanto, na pesquisa, "ajudou" a fazer o custo deste conjunto de produtos subir bem acima da inflação, que ficou em 0,16% na Região Metropolitana, segundo o IBGE.

Aliás, a alta da carne apareceu também na pesquisa do instituto, ainda que em menor intensidade. Os cortes com maiores elevações foram carne de porco (4,22%), picanha (3,70%) e costela (1,58%).

- A carne barateou em 2023 e, em 2024, até setembro ainda acumulava queda. Agora, mudou - acrescenta a técnica do Dieese, Daniela Sandi, às observações da coluna.

Tanto o Dieese quanto o IBGE identificam efeito das queimadas e da estiagem no centro-oeste do país como origem deste aumento repentino. Elas prejudicaram o pasto e os bois em confinamento não foram suficientes para manter a oferta para atender à procura. O IBGE acrescenta ainda o aumento das exportações como outro motivo para reduzir a quantidade no mercado interno.

Aliás, o consumo de carne é bem sensível a preços. Com a alta forte de 2019 a 2022 - quando a carne ficou bem mais cara do que hoje, especialmente a bovina -, a população começou a comprar menos, curva que se inverteu um pouco ao longo do ano passado, quando os cortes baratearam. _

Para garantir o churrasco

Qual a dica que a coluna considera mais efetiva para o consumidor driblar a alta? Buscar as promoções semanais das redes de supermercados e atacarejo. Fique de olho nos encartes.

A carne é chamariz de cliente, assim como o leite e hortigranjeiros de maior consumo. Os varejistas negociam preços especiais de cortes com os fornecedores, anunciando principalmente perto dos dias tradicionais do churrasco gaúcho. Fique ligado! _

Passeio facilitado

Consumidor verde

- Como ouvidor, solicitei o registro dessa situação para a área técnica, com o objetivo de identificar a motivação para esse procedimento e buscar melhores soluções - complementou.

Miola trouxe à coluna referências da legislação que apontam o entendimento de que a vida do visitante do Jardim Botânico pode ser facilitada. Decreto de 1967 determina que receita e despesa pública usem a via bancária. Já uma lei de 2017 afirma que o agente público deve aplicar soluções tecnológicas que simplifiquem processos ao usuário e veda imposição de restrições não previstas na legislação. _

Sem convênio

Lembrando que, como noticiou na sexta-feira a coluna, a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Estado (Sema), ao ser questionada, justificou por meio de uma nota, a restrição de pagamento apenas a dinheiro pelo fato de não ter convênio com bancos. Informou ter iniciado um processo, que não avançou por "questões jurídicas", que não foram detalhadas.

Ainda no texto, vinculou a melhora do atendimento à concessão do Jardim Botânico, que já se tentou fazer e não teve interessados. A Sema diz estar adequando o edital, mas não tem prazo de publicação. _

Apesar disso, visite

Mesmo com a dificuldade, a coluna recomenda frequentar o Jardim Botânico, um dos lugares mais agradáveis da Capital. Especialmente, se você for um "consumidor verde", como a coluna tem provocado. Com 66 anos e 36 hectares, o parque tem trilhas, lagos e o Museu de Ciências Naturais, incluindo laboratórios, salas de exposições e de coleções científicas. Ele integra a Rede Brasileira de Jardins Botânicos, sendo uma das cinco unidades com classificação "A" no Brasil, o que significa estar entre os melhores do país na avaliação do Conselho Nacional do Meio Ambiente. _

Vagas de natal

Com 16 lojas no RS, a Pernambucanas está com 47 empregos temporários abertos para atendimento de clientes e vendas de final de ano. O curioso é enfatizar a busca também por candidatos com mais de 45 anos, dizendo que "acredita no potencial desse grupo etário e nos benefícios gerados a partir da conexão entre gerações". A rede foi criada em 1908.

ACERTO DAS TUAS CONTAS 



09 de Novembro de 2024
CORTES DE GASTOS

Sob pressão, governo adia anúncio de medidas. 

Previsto para ocorrer havia alguns dias, o anúncio das medidas de corte de gastos foi adiado pelo governo federal. A reunião ministerial com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o tema terminou sem qualquer anúncio.

Na segunda-feira, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que a equipe econômica estava na "reta final" do pacote. No entanto, a rodada de reuniões ao longo da semana com ministros das áreas que seriam alvo das medidas turbinou as resistências, levando ao risco de desidratação do plano elaborado pela equipe econômica.

A demora no anúncio preocupa o mercado financeiro, que teme que sobrevivam apenas medidas de "pente-fino" em detrimento de mudanças estruturais que controlem a trajetória da dívida pública.

Haddad acionou na sexta-feira a "tropa de choque" quase completa de sua pasta para a reunião ministerial no Palácio do Planalto. Participaram os secretários Dario Durigan (executivo), Guilherme Mello (Política Econômica), Robinson Barreirinhas (Receita Federal) e Marcos Pinto (Reformas Econômicas).

Resistência de ministros

A principal medida prevista pela equipe econômica é limitar as despesas obrigatórias, incluindo a Previdência Social, a um aumento de 2,5% ao ano acima da inflação - o mesmo teto do arcabouço fiscal.

O plano gerou revolta entre alguns ministros. O titular da Previdência, Carlos Lupi, por exemplo, disse publicamente que não haveria nenhum corte em sua área.

Os ministros do Trabalho, Luiz Marinho, e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Wellington Dias, também descartaram qualquer ajuste em benefícios. 

sábado, 2 de novembro de 2024


02 de Novembro de 2024
MARTHA MEDEIROS

Partir com elegância

Não é a primeira vez que escrevo sobre eutanásia, mas o assunto voltou ao debate, inspirado pelo poeta e pelo novo filme de Almodóvar. A morte com data marcada pode ser uma benção. A pessoa fez os outros felizes, contribuiu de alguma forma para a sociedade e, durante o inventário de suas perdas e ganhos, resolve que é hora de partir, sem esticar seu suplício. Nem simples, nem fácil, mas uma escolha legítima.

Claro que não se pode banalizar o assunto e aceitar que adolescentes deprimidos façam o mesmo: a decisão tem que estar lincada a um diagnóstico de doença terminal, sem chance nenhuma de recuperação. Jovens: vivam, sofram e avancem. O tema aqui são os casos irreversíveis, quando só há duas opções: aguentar o total declínio físico e mental, esfacelando a si e à família, ou acelerar o fim de forma dramática e chocante.

A terceira opção seria apagar serenamente, ao lado de um médico e dos afetos mais íntimos, vivenciando a morte com a mesma elegância com que se viveu a vida. Mas não. Fizeram a gente acreditar que a dor enaltece a existência, como se sofrer fosse não apenas normal, mas obrigatório. De fato, a dor nos amadurece, mas não é preciso penar para dar sentido à vida. O portador de uma doença incurável e debilitante, quando cogita o suicídio, é porque chegou a um grau elevado de consciência, entendeu que depois de uma vida bem usufruída, a morte deixa de ser inimiga para se transformar em aliada.

A doença já impedia Antonio Cicero de desfrutar seus prazeres cotidianos. Usou, então, o resto de sua lucidez para tomar uma decisão extrema, assim como nós também decidimos nossas pequenas mortes: divórcios, demissões, emigrações. Encerramos etapas em vida, em troca de outros desafios. Ele optou pelo encerramento absoluto, em troca de nada. O impacto é bem maior, mas ainda compreensível.

Essa crônica não é um empurrão para as trevas, mas para a luz. Um dia, talvez, o país acolha a ideia de uma saída digna diante dos desafios radicais da velhice e desmistifique a morte como vilã. Ela não é vista da mesma maneira por todos, então não sejamos arrogantes diante da escolha de alguém que passa por uma angústia intolerável. Se a vida de cada um merece respeito, a morte de cada um, naturalmente, também. 

MARTHA MEDEIROS

02 de Novembro de 2024
COMPORTAMENTO

COMPORTAMENTO - Um amor escondido

Sinais de alerta. O primeiro passo para identificar se está em um relacionamento pocketing é observar o comportamento do parceiro ou parceira e avaliar se as condições da relação são transparentes e satisfatórias para ambos. Somente o diálogo permitirá entender se a questão pode ou não ser ajustada a contento dos dois, como destaca Andréa Alves:

- Há uma grande diferença entre esconder alguém deliberadamente, com a intenção de enganar, e fazer isso sem ter esse intuito, mesmo que acabe magoando. É importante conversar e identificar com qual situação está lidando. Quando se constata que há um comportamento traiçoeiro, a melhor opção é buscar formas de sair da relação.

Usado para definir laços nos quais um dos envolvidos esconde o parceiro publicamente, o "relacionamento pocketing" se tornou um tema frequente nas redes sociais e nas terapias

A expressão é derivada do inglês pocketing, que, em tradução livre, significa "colocar no bolso". Segundo a psicóloga Desirèe Monteiro Cordeiro, não se trata de uma característica das relações, mas de um traço tóxico.

- É como se a relação fosse um segredo, como se ela só existisse no ambiente privado das pessoas que a compõem. Fora desse ambiente privado, uma das partes não demonstra afeto, não inclui a outra no seu círculo de amigos e não apresenta para a família - exemplifica a profissional.

- Esse conceito está diretamente relacionado a um comportamento que acaba se mostrando tóxico, porque a outra parte não está de acordo. Quando há consenso e os dois decidem manter a relação em segredo, já não se configura mais o pocketing - pondera.

Para Andréa Alves, psicóloga especializada em atendimento a casais, são diversos os fatores que podem levar alguém a praticar esse tipo de relação, desde experiências ruins vividas em relacionamentos anteriores até a preferência pessoal por manter o sigilo.

Entretanto, em muitas das vezes, a motivação vem de um sentimento de vergonha em relação ao outro, em geral, por aspectos como a aparência, o jeito e a classe social. Também pode estar ligado à infidelidade, quando a pessoa esconde a relação porque já tem outro compromisso ou deseja continuar se relacionando com outras.

Independentemente da motivação de quem o executa, o pocketing pode causar prejuízos emocionais a quem é "colocado no bolso", conforme as especialistas.

- Às vezes, quem sofre isso nem percebe que está sendo escondido. Quando a pessoa se dá conta de que está vivendo uma relação assim, a sensação é de menos-valia. Ela vai questionar suas qualidades, questionar sua aparência e achar que o problema é com ela. É algo que pode trazer muitos danos e traumas, sobretudo à autoestima - afirma Desirèe.

- Dentro desse contexto abusivo, muitas vezes a pessoa que sofre o pocketing entende que precisa aceitar essa condição, mesmo que para ela não esteja bom. E aí ela vai tentando achar justificativas para a postura do outro, nutrindo esperanças de que um dia será diferente. Isso acaba gerando muito sofrimento psíquico - completa Andréa. _

Camila Bengo

02 de Novembro de 2024
CARTA DA EDITORA - Donna Beauty Pompéia

Sextou com a elegância fashion das Gu

Encontros com Astrid

As cores dão um toque especial nas produções, mas a sofisticação do preto tem o seu valor. A Alice Bastos Neves e a Kelly Costa investiram em looks Pompéia monocromáticos, que são a definição da elegância fashion.

Novos formatos e padronagens contemporâneas, aliados a elementos de alfaiataria, caracterizam as produções, que podem incorporar uma combinação de texturas e o clássico preto e branco. A consultoria de moda da Pompéia sugere adicionar um toque de criatividade ao visual por meio de aplicações, bordados ou listras, além de peças inteligentes, que transitam por todas as produções.

Encontre as opções nas lojas, no site lojaspompeia.com.br e no app. Quer auxílio para escolher os melhores looks? Conte com o serviço de consultoria de moda gratuito da Pompéia, disponível em todas as lojas, inclusive na Donna Beauty Pompéia, no Pontal Shopping (Av. Padre Cacique, 2.893, de segunda a sábado, das 10h às 22h, e aos domingos, das 12h às 20h).

Para a geração de adolescentes e jovens adultos da década de 1990, a MTV era o escape de entretenimento nos moldes do que hoje representam as redes sociais. E Astrid Fontenelle marcava presença como uma das mais importantes apresentadoras do canal, a histórica pioneira dos VJs.

Sou dessa turma. Assim como fui do Happy Hour, já no GNT, e do apaixonante Chegadas e Partidas, em que ela surge como uma emocionada caçadora de histórias que começam (ou terminam) com abraços e beijos - reencontros e despedidas reais no saguão de um aeroporto. O comando de 10 anos do Saia Justa não preciso nem citar, quando a carioca virou praticamente sinônimo do programa.

Isso faz de mim uma fã da Astrid? Com certeza, acho uma das mulheres mais interessantes da televisão brasileira há bons 30 anos. Mas diz muito mais sobre ela, a entrevistada da capa desta semana. Com seu projeto mais recente, Admiráveis Conselheiras, a apresentadora conversa com mulheres 60+ com a desenvoltura de seu lugar no tempo, no espaço e nos sentimentos destas trajetórias. O que é envelhecer no Brasil? O que é envelhecer como mulher no Brasil?

Poderíamos aqui fazer uma análise simplista, porém não incorreta, de que Astrid acerta nos trabalhos porque sabe crescer junto com seu público.Mas prefiro dizer que, melhor ainda, ela ajuda a sua audiência a crescer como pessoas. _

Agendonna - Palestra - Concerto de moda

Na serra gaúcha

Caxias do Sul recebe de 4 a 8 de novembro a terceira edição do Festival Concerto de Moda da Serra Gaúcha (Rua Teixeira Mendes) com desfiles de grandes marcas, além de brechós, palestras, exposições, e muito mais. O evento destaca tendências e provoca reflexões sobre a identidade cultural a partir da moda. A entrada é gratuita mediante retirada antecipada na plataforma Sympla. Veja mais em @concertodemoda.

Força feminina

No dia 7 de novembro, a escritora indiana Nilima Bhat será uma das palestrantes do evento Chama, promovido pela escola de negócios Sonata Brasil, em Porto Alegre. Referência em pesquisas sobre força feminina, Nilima abordará o tema focando em quem exerce cargos de lideranças e como lidar em momentos de crise. O evento será realizado na Casa da Ospa (Av. Borges de Medeiros, 1.501). Mais informações e ingressos em sonatabrasil.com.br/chama.

bazar Na Capital

Para quem deseja renovar o guarda-roupa, a St.Trois irá realizar a segunda edição do Bazar de La Mode, em que reúne uma seleção de peças atemporais da marca gaúcha com até 60% de desconto. O bazar ocorre de 7 a 9 de novembro, das 10h às 18h, na St. Trois Maison (Rua Cel. Bordini, 1.111), no Moinhos de Vento.

Joias poéticas

Parceria

Uma joia inspirada em poesia? Foi o que a joalheira Rô Boff criou ao lado da poeta Claudia Schroeder na coleção Palavra - uma série de peças em diversos metais e pedras, com versos gravados de alguns poemas da escritora. Estão à venda na Aloja (Av. 24 de Outubro, 1.681) e também no Instagram da marca @ro_boff.

CARTA DA EDITORA

02 de Novembro de 2024
60 MAIS

60 MAIS

- Nunca estamos preparados para perder alguém, ainda mais uma pessoa que teve uma vida muito intensa comigo - reflete a psicóloga de 67 anos. - A finitude nos dá consciência de que temos que viver bem o aqui e o agora, fazer o máximo possível, porque amanhã a gente não sabe se vai estar vivo.

A maior dificuldade foi enfrentar questões da vida prática, como papéis e contas a pagar. Tudo que era conversado e dividido por dois passou a ser responsabilidade apenas de Rosangela:

- Tive um sentimento de incapacidade: "Será que vou dar conta?" Isso me forçou a me organizar, a colocar os pés no chão.

No Dia de Finados, cabe destacar que a viuvez e o luto na terceira idade têm peculiaridades. Quem envelhece precisa ir se habituando a um ritmo mais intenso de perdas, e não só de familiares e amigos ao redor. É necessário se despedir do corpo e do rosto jovens, da carreira, dos anos mais produtivos, da mobilidade sem entraves. Para a mulher, a transição para a velhice é ainda mais marcante com a menopausa. Deve-se entender que tudo isso faz parte do ciclo da vida, pontua Ângela Seger, psicoterapeuta de família e de enlutados.

- Não temos controle sobre tudo. Por mais que a gente se prepare, as coisas vão acontecer. Posso cuidar muito da minha saúde e sofrer um acidente. Posso ser muito amorosa com meus filhos e eles irem morar em outro país. Tem coisas que vão acontecer se vivermos até a velhice, coisas que só acontecem com quem chega lá - afirma Ângela, também professora da PUCRS. - O processo de luto nos acompanha: morte de pessoas, animais de estimação. Aprender a lidar com perdas, dar-se conta de que morte e vida são indissociáveis, nos dá uma bagagem. Luto é uma reação natural a uma perda que envolve o emocional, a cognição, o social.

O luto na terceira idade requer mais cuidados e atenção do próprio enlutado e daqueles que o circundam, enfatiza a psicóloga Denise Cápua Corrêa, coordenadora administrativa do Cora - Núcleo de Luto do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi) de Porto Alegre.

- Um luto dentro do processo de envelhecimento, como a perda do parceiro, é mais complexo. Nossa rede de apoio é um dos fatores que podem facilitar o luto. Muitas vezes, o casal tem uma história de décadas. Em todas as perdas, um pedaço da gente vai junto, um pedaço da nossa história - reflete Denise.

Com a morte de um companheiro, é preciso reposicionar a relação que termina: antes ela era externa, agora terá de ser introjetada:

- Quem era essa pessoa, que tipo de relação eu tinha com ela, que falta ela faz na minha vida? Precisamos de tempo para entender isso, ainda mais se for uma morte abrupta. Há necessidade de adaptação e transformação. Somos uma pessoa antes de perder e outra depois.

O contexto em que o idoso está inserido - fora do mercado de trabalho, com os filhos envolvidos com suas próprias vidas - impacta muito esse processo. Existe o risco de o enlutado ficar muito sozinho. Ângela sugere:

- O suporte pode vir da família, dos amigos, de um grupo de mães, de um grupo de que a pessoa faça parte ou possa vir a fazer, até mesmo um grupo de enlutados.

Para Rosangela, as pessoas com quem cruzou pelo caminho foram fundamentais para dar conta dos compromissos a honrar e também da elaboração da morte do marido. A quem passa por situação semelhante, ela sugere "dar tempo ao tempo":

- É tão banal isso, mas tem que deixar o tempo agir. Quando quer chorar, chora. Quando quer rir, ri. Tenho momentos de risadas, mas, do nada, ouço uma música e desabo a chorar. Tem que deixar fluir os sentimentos, não censurar, ser flexível, baixar a guarda. Seguir a vida. _

60 Mais Larissa Roso

02 de Novembro de 2024
DRAUZIO VARELLA

Saul Newman, demógrafo das Universidades de Londres e de Oxford, conduziu um estudo para analisar a questão da longevidade em cinco localidades, sempre citadas por concentrar o maior número de supercentenários - pessoas com mais de 110 anos: Okinawa, no Japão; Sardenha, na Itália; Icaria, na Grécia; Loma Linda, na Califórnia; e Nicoya, na Costa Rica.

Essas regiões foram classificadas como "zonas azuis", denominação que aumentou o fluxo de turistas e gerou interesses econômicos. Todos querem saber que alimentos consomem seus habitantes, quais são os hábitos cotidianos, que tipo de atividade física realizam e que medicamentos consomem.

O levantamento realizado por Saul Newman chegou a resultados chocantes: a escolha dessas zonas azuis foi baseada em dados epidemiológicos cheios de erros e de vieses estatísticos que jamais poderiam ter sido aceitos pela comunidade científica.

Nos Estados Unidos, por exemplo, no tempo em que os registros de nascimentos e mortes não eram controlados, havia grande número de supercentenários. A obrigatoriedade de certidões de nascimento e atestados de óbito reduziu de 69% a 82% o número deles. Na Itália, França e Inglaterra, em que os registros são mais uniformes, os dados mostraram que a longevidade da população é comprometida pela pobreza, más condições de saúde, renda per capita baixa e criminalidade alta, entre outros fatores socioeconômicos.

Nesses países, apenas 18% dos habitantes considerados supercentenários resistiram à verificação criteriosa das certidões de nascimento e de óbito. Nos Estados Unidos, esse número ficou próximo de zero. Lá, entre 500 pessoas que alegavam ter mais de 110 anos, somente sete tinham certidão de nascimento e apenas 50 possuíam atestado de óbito.

Newman mostrou que cerca de 70% dos centenários na Grécia morreram antes de completar essa idade, mas suas famílias continuavam a receber as aposentadorias. Averiguações recentes do governo revelaram que estão nessa situação mais de 9 mil gregos, supostamente com mais de 100 anos.

O autor analisa com detalhes o caso dos habitantes de Okinawa, talvez o exemplo de longevidade mais citado na literatura, a partir de 2004. A revisão dos dados realizada por órgãos governamentais revelou que Okinawa tem a segunda renda mais baixa do Japão, a maior porcentagem de habitantes com mais de 65 anos vivendo de auxílio da previdência, o segundo salário mínimo mais baixo e os índices mais altos de desemprego de todas as regiões japonesas. Dos cidadãos considerados centenários, 82% estavam mortos havia anos.

Os dados sobre o consumo de vegetais, peixes gordurosos e batata doce, anteriormente usados para justificar a pretensa longevidade da população, continham erros em série. Entre as regiões japonesas, Okinawa tem o menor consumo per capita de frutas, vegetais, batata doce, sardinhas e outros peixes ricos em ômega 3. A ilha ocupa o segundo lugar no consumo de cerveja, o primeiro no de Kentucky Fried Chicken, e os índices de massa corpórea (IMC) dos que estão com mais de 75 anos são mais elevados do país.

Na realidade, Okinawa, Sardenha e Icaria são áreas pobres situadas em países ricos. Apesar de classificadas como zonas azuis, convivem com níveis de escolaridade mais baixos e com piores indicadores de saúde. Aparecem como campeões de longevidade graças a manipulações políticas, vieses estatísticos e fraudes contra a previdência social. Quando Icaria recebeu o selo de zona azul, tinha índices de obesidade mais altos do que os Estados Unidos.

Loma Linda, na Califórnia, e Nicoya, na Costa Rica, se destacavam não pelo número de supercentenários, mas porque a longevidade média da população seria alta. Dados recentes do Center for Diseases Control (CDC), no entanto, demostraram que Loma Linda está distante das cidades americanas com taxas altas de longevidade. Em Nicoya, ocorre fenômeno semelhante: no censo de 2000, apresentou um dos índices de longevidade mais baixos da Costa Rica.

Em entrevista ao jornalista André Biernath, da BBC, Newman afirmou: "Para mim, esses erros eram ignorados porque, em primeiro lugar, há algo muito lucrativo para ser vendido. Em segundo, porque as pessoas querem soluções fáceis para problemas que exigem trabalho árduo". _

Drauzio Varella

02 de Novembro de 2024
J.J. CAMARGO

Quando lhe perguntei se eles tinham razão para não acreditar, ele respondeu sem escolher as palavras: "Sim, doutor, razões para descrença não lhes falta porque eles sabem que eu não gostaria de ter vindo".

Prometi que faria isso desde que me desse uma razão suficientemente boa para justificar que ele, um adulto de aparência normal, tivesse marcado uma consulta com duas semanas de antecedência para encontrar um médico que ele anunciava, com todas as letras, que não tinha intenção de conhecer.

"Eu entendo a sua surpresa, doutor, porque o senhor não conhece a minha família." Foi só então que percebi que ele estava com falta de ar. E relaxei um pouco, por termos entrado num terreno onde transito com naturalidade, há muitos anos.

Com enfisema severo e já tendo esgotado todas as formas de tratamento clínico, ele parecia, de antemão, um candidato considerável para o transplante pulmonar. Mas a sensação de alívio pela perspectiva de ajudar durou pouco.

"Tudo começou quando meus filhos conheceram um paciente transplantado pelo senhor e me fizeram jurar que viria consultá-lo. Como não me empolguei, eles organizaram um encontro com o tal paciente, para que eu visse o que significava voltar a respirar depois de um transplante por enfisema. Por curiosidade, fui. Gostei do entusiasmo do meu companheiro de infortúnio, mas depois de 10 minutos de conversa ficou claro que só a doença, com sua falta de ar, nos assemelhava. 

Quanto mais ele falava do tempo de espera por um doador, dos pesadelos que tivera à espera de um chamado noturno, da preparação com fisioterapia, da semana na UTI e dos cuidados para que seis anos depois estivesse respirando maravilhosamente bem, mais me convencia de que os nossos modelos de felicidade em nada se pareciam."

Com um certo fastio que não conseguiu disfarçar, ele me alcançou uma pilha de exames que seu clínico zeloso o obrigava a realizar todos os anos, provavelmente movido pela sensação de impotência de não ter conseguido convencê-lo a parar de fumar.

A capacidade pulmonar de 19% do previsto era a única e trágica disfunção. Por todo o resto, era um ótimo candidato ao transplante do ponto de vista médico.

Meia hora depois, eu já estava convencido de que ele tinha boas razões para debandar. Todos nós estamos dispostos a lutar pela volta da vida boa que já tivemos. Mas não podemos pretender igual entusiasmo para quem nunca teve. Custei a aceitar que isso existia. Quanto mais paixão temos pela vida, menos entendemos que alguém possa não tê-la.

Diante de um paciente portador de uma situação grave, mas com chance de recuperação, muitas vezes me sinto estimulado a abraçá-lo, numa oferta explícita de parceria. Naquele dia, chocado com a descoberta do quanto era inútil oferecer-lhe ajuda, me dei conta de que a tal parceria era uma alternativa derradeira. 

E o abraço outra vez me pareceu urgente. "Que bom que o senhor entendeu. Agora ligue para os meus filhos e os convença que o transplante não está indicado no meu caso. A pressão deles está me enlouquecendo. E nunca vou ter coragem de admitir que estou desistindo. Não posso deixar essa imagem".

Arrasado, eu prometi que ligaria. _

J.J. CAMARGO

02 de Novembro de 2024
CARPINEJAR

O filho do fim

Todos os filhos são filhos do início, mas somente um será o filho do fim. O filho que cuidará do pai ou da mãe na velhice. O filho que virá de longe para se oferecer por inteiro.

O filho que largará tudo para estar perto na hora do adeus. O filho que não pensará duas vezes para fazer as malas e se mostrar disponível. O filho que ficará na cabeceira da cama ouvindo com atenção as palavras derradeiras. Não desperdiçará nenhum som, nenhum suspiro, nenhum esboço de riso.

O filho que não se acovardará com a morte iminente porque se ocupará em registrar detalhe por detalhe do apogeu daquela vida. Toda lâmpada brilha mais antes de apagar, toda existência ilumina mais antes de ir embora.

Será o filho gentil, pronto para os extremos da condição humana. O guardião das confissões, que não passará adiante os segredos ditos nos sonhos e nos delírios, que saberá discernir o que é intenção e o que é medo.

Será o filho que controlará o nível das dores, o nível do cansaço, os limites de cada turno. Será o filho que entrelaçará o prendedor dos dedos como quem mede a pressão.

Será o filho que realizará o último desejo, com a determinação férrea daquele que cumpre a reabilitação de um vício. Será o filho macio, que promoverá a amizade com todos os tempos vividos, com todas as versões da pessoa.

Será o filho com a amnésia das brigas e discussões, já que o esquecimento é doce no aceno, já que o esquecimento não olha para trás. Será o filho que não se desviará da missão de ser útil, e afastará qualquer um que se aproximar com alarmismo.

Será o filho que não levará nenhuma ofensa, grito, desabafo, indiscrição para o lado pessoal. Não tem como esperar bons modos no desespero.

Será o filho que penteará os cabelos do pai ou da mãe, desfazendo os nós suavemente, que se preocupará com a aparência para as visitas, que limpará a remela dos olhos, que trocará o enxoval, que dará água de paninho na boca para umedecer os lábios, que não terá nojo ou repulsa da debilidade, que adormecerá dobrado no sofá aguardando o amanhecer.

Será o filho plantonista da madrugada, cobrindo os horários que ninguém pode, garantindo a paz paliativa do desfecho. Será o filho que não ansiará por ser amado de volta, muito menos se verá carente de reconhecimento. Não pedirá nada em troca, não exigirá retorno de coisa alguma, atendendo ao chamado da própria consciência.

Trata-se de um único filho entre todos, que se fará presente na despedida. De contato miúdo e estreito, com a rotina incansável das mãos livres.

E nunca costuma ser o filho predileto, jamais é o filho mimado e supervalorizado, mas o filho mais rebelde, o mais criticado, o mais desobediente, o mais inesperado. Esse filho vai parir, absolutamente sozinho, a partida do seu pai ou da sua mãe.

E dormirá em paz, quite com a saudade. 

CARPINEJAR

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