COM A PALAVRA
Doutor em História Econômica pela USP, economista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial em Washington (EUA) entre 1996 e 2020. Consultor, inclusive, da ONU
"Precisamos mudar a organização do Sistema Único de Saúde"
O financiamento da saúde é há décadas tema de estudo de André Medici. No seu currículo, está a participação na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, é consultor internacional para organismos como Banco Mundial, BID e ONU.
Vinicius Coimbra
O NHS (sigla em inglês para o Serviço de Saúde Nacional do Reino Unido), que serviu de inspiração para o SUS, tem enfrentado crises recentes. Há reclamação de médicos e insatisfação dos usuários, semelhante ao que ocorre no Brasil. O que esses dois cenários representam em relação à ideia do financiamento público da saúde?
O sistema financiado com recursos públicos enfrentará instabilidades. O NHS continua sendo muito bom, mas não teve capacidade de renovação. A crise pandêmica deixou o sistema em uma situação difícil, porque ele não estava preparado para receber um grande número de pacientes - a Inglaterra foi um dos países mais afetados pela covid-19. Temos de considerar o envelhecimento da população também.
O Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) também influenciou neste cenário. Há a chegada de imigrantes, que podem ter outros tipos de necessidades. Além disso, a situação econômica da Inglaterra não é boa. Se não há recursos, ocorre uma crise na saúde, com a perda de profissionais e desistência de carreiras para o sistema; o atendimento piora e as filas aumentam para os pacientes.
? Podemos relacionar a situação atual do NHS com o presente do SUS?
O SUS também é um bom sistema. Até 2000, teve muitas inovações, uma delas a introdução da saúde da família, que criou a base de atendimento à população que não tinha acesso. Não sofreu tanto com a pandemia, que foi quando mais recebeu recursos. O SUS tem problemas e uma organização diferente da Inglaterra. A base de operação é municipal e a maioria dos municípios brasileiros tem menos de 50 mil habitantes, que, em muitos casos, não têm a capacidade necessária para organizar um sistema de saúde.
Por isso, a prefeitura recebe o dinheiro, não tem capacidade de gerenciar e as pessoas que precisam de níveis de complexidade maiores vão para municípios vizinhos. É o que ocorre na região metropolitana de Porto Alegre, por exemplo. Isso faz com que a prefeitura receba o recurso para pacientes que são tratados na Capital. Assim, você sobrecarrega determinados sistemas e deixa outros sem a capacidade necessária de dar atenção.
Qual é a melhor maneira de organizar o SUS?
É um modelo de regionalização, mas não pode ser baseado em municípios, mas sim em regiões de saúde. Primeiro deve existir uma boa atenção primária (municipal) e, depois, se precisar, o atendimento especializado (regional). O paciente, por fim, deve voltar para o centro de saúde do seu município de origem. Também deve haver um sistema de prontuário médico eletrônico que consiga mapear pacientes, com a história clínica dele.
Melhorar o SUS passa apenas por mudar como ele funciona ou é verdadeira a ideia de que faltam recursos para a saúde?
Antes de falarmos em investimentos, precisamos mudar a organização do SUS. O sistema precisa de uma divisão de trabalho. Uma pessoa com um problema simples de saúde deve resolver isso na atenção básica, e só depois ir para a média e alta complexidade. Mas não é o que ocorre: no Brasil, você não atende bem em nenhuma etapa. Isso faz com que as pessoas busquem uma emergência hospitalar quando não é o caso.
Observamos esses problemas no SUS em meio ao envelhecimento da população. No RS, os idosos representarão 40% da população em 2070. Como enfrentar esse cenário?
É uma questão mundial e foi uma das causas do agravamento da crise do NHS. Isso ocorre porque você estreita a base de financiamento do sistema e não tem estruturas capazes de tratar um conjunto de grandes pessoas. A solução é aumentar a promoção, a prevenção e fazer com que as pessoas tenham uma vida mais saudável. Ou seja: é necessário que a população mantenha hábitos saudáveis desde cedo.
O envelhecimento brasileiro ocorre em meio ao subdesenvolvimento, ao contrário dos países ricos. Qual é o tamanho do nosso prejuízo nesse contexto?
A diferença é muito grande. Países que ficam ricos antes de envelhecer conseguem enfrentar os custos da velhice. O Brasil é um país que não enriqueceu e não terá os recursos para enfrentar o envelhecimento. Nunca vamos conseguir gastar 5 mil dólares por pessoa, como faz o NHS, ou 17 mil dólares, como fazem os Estados Unidos. Não chegamos a mil dólares por pessoa. Por isso, o Brasil precisa de soluções racionalizadoras para fazer com que a promoção, a prevenção e a atenção médica sejam mais eficazes.
A forma de fazer isso é por meio da interoperabilidade dos registros eletrônicos, que fazem com que a informação seja utilizada para administrar a gestão da saúde.
O atendimento particular tem ganhado espaço no país por conta dos problemas do SUS. É uma saída para melhorar o setor?
Vejo o privado como um complemento ao sistema público. O SUS é importante porque possibilitou o acesso à saúde a uma parte da população que não tinha acesso. Nas capitais, em torno de 50% da população está coberta por seguro de saúde. Na média do Brasil, são 25% que estão cobertos, os outros 75% são SUS. Isso ocorre porque há regiões rurais onde os seguros não estão disponíveis.
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