sábado, 9 de novembro de 2024


09 de Novembro de 2024
COM A PALAVRA - André Medici

COM A PALAVRA

Doutor em História Econômica pela USP, economista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial em Washington (EUA) entre 1996 e 2020. Consultor, inclusive, da ONU

"Precisamos mudar a organização do Sistema Único de Saúde"

O financiamento da saúde é há décadas tema de estudo de André Medici. No seu currículo, está a participação na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, é consultor internacional para organismos como Banco Mundial, BID e ONU.

Vinicius Coimbra

O NHS (sigla em inglês para o Serviço de Saúde Nacional do Reino Unido), que serviu de inspiração para o SUS, tem enfrentado crises recentes. Há reclamação de médicos e insatisfação dos usuários, semelhante ao que ocorre no Brasil. O que esses dois cenários representam em relação à ideia do financiamento público da saúde?

O sistema financiado com recursos públicos enfrentará instabilidades. O NHS continua sendo muito bom, mas não teve capacidade de renovação. A crise pandêmica deixou o sistema em uma situação difícil, porque ele não estava preparado para receber um grande número de pacientes - a Inglaterra foi um dos países mais afetados pela covid-19. Temos de considerar o envelhecimento da população também.

O Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) também influenciou neste cenário. Há a chegada de imigrantes, que podem ter outros tipos de necessidades. Além disso, a situação econômica da Inglaterra não é boa. Se não há recursos, ocorre uma crise na saúde, com a perda de profissionais e desistência de carreiras para o sistema; o atendimento piora e as filas aumentam para os pacientes.

? Podemos relacionar a situação atual do NHS com o presente do SUS?

O SUS também é um bom sistema. Até 2000, teve muitas inovações, uma delas a introdução da saúde da família, que criou a base de atendimento à população que não tinha acesso. Não sofreu tanto com a pandemia, que foi quando mais recebeu recursos. O SUS tem problemas e uma organização diferente da Inglaterra. A base de operação é municipal e a maioria dos municípios brasileiros tem menos de 50 mil habitantes, que, em muitos casos, não têm a capacidade necessária para organizar um sistema de saúde.

Por isso, a prefeitura recebe o dinheiro, não tem capacidade de gerenciar e as pessoas que precisam de níveis de complexidade maiores vão para municípios vizinhos. É o que ocorre na região metropolitana de Porto Alegre, por exemplo. Isso faz com que a prefeitura receba o recurso para pacientes que são tratados na Capital. Assim, você sobrecarrega determinados sistemas e deixa outros sem a capacidade necessária de dar atenção.

Qual é a melhor maneira de organizar o SUS?

É um modelo de regionalização, mas não pode ser baseado em municípios, mas sim em regiões de saúde. Primeiro deve existir uma boa atenção primária (municipal) e, depois, se precisar, o atendimento especializado (regional). O paciente, por fim, deve voltar para o centro de saúde do seu município de origem. Também deve haver um sistema de prontuário médico eletrônico que consiga mapear pacientes, com a história clínica dele.

Melhorar o SUS passa apenas por mudar como ele funciona ou é verdadeira a ideia de que faltam recursos para a saúde?

Antes de falarmos em investimentos, precisamos mudar a organização do SUS. O sistema precisa de uma divisão de trabalho. Uma pessoa com um problema simples de saúde deve resolver isso na atenção básica, e só depois ir para a média e alta complexidade. Mas não é o que ocorre: no Brasil, você não atende bem em nenhuma etapa. Isso faz com que as pessoas busquem uma emergência hospitalar quando não é o caso.

Observamos esses problemas no SUS em meio ao envelhecimento da população. No RS, os idosos representarão 40% da população em 2070. Como enfrentar esse cenário?

É uma questão mundial e foi uma das causas do agravamento da crise do NHS. Isso ocorre porque você estreita a base de financiamento do sistema e não tem estruturas capazes de tratar um conjunto de grandes pessoas. A solução é aumentar a promoção, a prevenção e fazer com que as pessoas tenham uma vida mais saudável. Ou seja: é necessário que a população mantenha hábitos saudáveis desde cedo.

O envelhecimento brasileiro ocorre em meio ao subdesenvolvimento, ao contrário dos países ricos. Qual é o tamanho do nosso prejuízo nesse contexto?

A diferença é muito grande. Países que ficam ricos antes de envelhecer conseguem enfrentar os custos da velhice. O Brasil é um país que não enriqueceu e não terá os recursos para enfrentar o envelhecimento. Nunca vamos conseguir gastar 5 mil dólares por pessoa, como faz o NHS, ou 17 mil dólares, como fazem os Estados Unidos. Não chegamos a mil dólares por pessoa. Por isso, o Brasil precisa de soluções racionalizadoras para fazer com que a promoção, a prevenção e a atenção médica sejam mais eficazes.

A forma de fazer isso é por meio da interoperabilidade dos registros eletrônicos, que fazem com que a informação seja utilizada para administrar a gestão da saúde.

O atendimento particular tem ganhado espaço no país por conta dos problemas do SUS. É uma saída para melhorar o setor?

Vejo o privado como um complemento ao sistema público. O SUS é importante porque possibilitou o acesso à saúde a uma parte da população que não tinha acesso. Nas capitais, em torno de 50% da população está coberta por seguro de saúde. Na média do Brasil, são 25% que estão cobertos, os outros 75% são SUS. Isso ocorre porque há regiões rurais onde os seguros não estão disponíveis. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

09 de Novembro de 2024 MARTHA MEDEIROS Etarismo flexível Na época em que assistia shows inteiros em pé, na pista do estádio, como aconteceu ...

Postagens mais visitadas