sábado, 4 de janeiro de 2020



04 DE JANEIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Que vontade de ser padre

O filme Dois Papas me fez ter vontade de virar padre. Acho que eu seria um bom padre. Não sou muito de fazer sermão nem de ficar ouvindo confissões, mas gosto daquele aspecto sereno que eles têm. O aspecto de quem possui comunicação privilegiada com Deus. Os padres são pessoas calmas. É bonito ser uma pessoa calma. Além disso, a tradição informa que os padres comem bem. "Comi como um padre", diz-se, depois de uma lauta refeição. Assim, se eu fosse padre, comeria todos os dias como um, algo de fato entusiasmante.

Mas, infelizmente, suponho que não tenha mais idade para me dedicar à carreira eclesiástica. Inclusive tem que fazer curso e tudo mais. Seguirei, portanto, na reles vida mundana, sem o conhecimento dos grandes mistérios da religião, sem estar envolvido por aquela aragem de serenidade e sem comer como um padre.

Triste.

Em todo caso, esse desejo sacro que me tomou o espírito dá a dimensão da qualidade do filme do brasileiro Fernando Meirelles. O filme, se é bom, se infiltra na alma do espectador.

Talvez alguém possa acusar o roteiro de ser um pouco maniqueísta, um pouco esquemático demais, o papa bom versus o papa mau, mas, ainda assim, a história é bem contada. Assista. Você vai gostar.

Eu e a Kelly Mattos entrevistamos o Meirelles, na sexta-feira, no Timeline. Em meio a algumas revelações, ele contou do que mais gostou no filme: o fato de os dois papas, apesar de terem opiniões tão diferentes, ouvirem um ao outro.

- As pessoas precisam ouvir o outro - disse o Meirelles, ao que acrescentei:

- Eu sou "o outro"! Eu é que tenho de ser ouvido!

Ele riu.

Mas a verdade é que, como diria o Roberto Carlos, todos estão surdos. A impressão é de que o mundo se transformou em um grande Gre-Nal. Os dois times em eterna disputa bem poderiam ser representados pelos papas do filme: o conservador contra o progressista, o popular contra o elitista, o bonzinho do meu lado contra os malvados do lado deles. Quem está em um time jamais vê algo de bom feito pelo outro. Isso é aborrecido, porque desvaloriza as análises. Não interessa o fato ocorrido, você já sabe previamente se o analista vai se posicionar contra ou a favor. A cada notícia, antecipo sem jamais errar o que dirá cada pessoa pública, cada jornalista, cada artista, cada feicebuqueiro, cada tuiteiro. O pensamento deles já está empacotado e embalado. De que vale uma opinião dessas?

Os intelectuais de esquerda têm pesada responsabilidade por essa situação, porque sempre fizeram julgamento implacável de quem não concordava com eles. Para esses intelectuais, quem não era integralmente de esquerda era moralmente inferior. Aplicou-se, assim, a Terceira Lei de Newton: a toda ação, há sempre uma reação oposta de igual intensidade.

Quer dizer: foi a partir da postura excludente das esquerdas que se formou a nova direita, uma direita grosseira, agressiva, arrogante e igualmente excludente. Não é por acaso que Olavo de Carvalho, o supremo mentor da nova direita, defende o insulto ao invés do argumento. Ele compreendeu que, hoje, não importa o que é debatido, importa é quem debate. Assim, o que se precisa fazer é desmoralizar quem argumenta, sem ligar para o argumento. E, por desgraça, ele está certo. Ninguém vai mudar de opinião. Ninguém vai ouvir o outro. Deveriam todos. Até porque, já avisei, eu sou o outro.

DAVID COIMBRA

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