sábado, 11 de janeiro de 2020



11 DE JANEIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Namoro por carta

Já namorei por carta. Você consegue imaginar uma coisa dessas? Tinha lá em casa um bloco com papéis de carta, são folhas bem fininhas, quase translúcidas. Escrevia numa daquelas folhas. Dobrava. Acomodava dentro do envelope. Hesitava um pouco na hora de lamber as bordas para fechar - sempre achei isso pouco higiênico. Depois, precisava lamber também o selo, o que talvez seja ainda mais insalubre, fixá-lo no envelope, escrever meu nome e endereço e o nome e o endereço da moça para quem seria enviada a melosa missiva. Por fim, levava o envelope ao correio, despachava e ficava esperando que a amada recebesse e respondesse.

Se ela estivesse muito apaixonada, talvez eu recebesse a resposta em uns quatro dias. Esse prazo, aliás, era um dos critérios de avaliação do nível do relacionamento. Quanto mais curto, mais amor. Outro era o conteúdo da carta: quanto mais longo, mais amor. Um texto alentado, descritivo, com letra caprichada, de preferência redonda, era prova inequívoca de que eu habitava os pensamentos da florzinha. Mas, se ela escrevesse uma única página, com amplos espaços entre as linhas, bem, aí tinha coisa.

Caso eu estivesse passando pela fase doentia dos ardores da paixão, a espera pelo carteiro era um suplício. Quando o cara chegava sem nada para mim, sabia que só teria notícias da tchutchuquinha, na melhor das hipóteses, em 24 horas.

Vinte e quatro horas!

Agora, as pessoas mandam mensagem por celular e, se a resposta não vem em cinco minutos, elas ficam apreensivas, elas protestam. E, nos grupos de WhatsApp, elas compartilham as suas deprimentes reflexões sobre a vida e a política e às vezes escrevem apenas "Bom dia!", ao que todas as outras 54 pessoas do grupo respondem:

"Bom dia!" "Bom dia!"  "Bom dia!"

Cinquenta e quatro bons-dias apitando no seu celular.

Alguns grupos, é claro, têm lá a sua graça, sobretudo os de amigos que mandam bagaceirices. Participo de vários, apesar de, pudico que sou, jamais mandar bagaceirices. Apenas vejo, ruborizo e sigo em frente.

Agora, na última semana, ingressei num grupo interessante: o dos meus amigos de infância, do IAPI. Mas não aqueles com quem ainda mantenho contato e com os quais vou beber chopes cremosos quando estou em Porto Alegre, e sim os que tinham sumido depois da adolescência. São homens com mais de 50 anos de idade, alguns carecas, a maioria usando óculos, muitos irreconhecíveis. Suponho que todos tenham filhos, que já passaram por suas dificuldades, enfrentaram doenças, perdas, desilusões. Ou seja: são homens sérios.

Não falo com 90% deles há mais de 40 anos, mas, no momento em que começamos a "conversar" pelo Whats, passei a reconhecer as personalidades de uns e outros. Cada um se comportava como se estivéssemos nas baixadas da Plínio Brasil Milano, jogando bola no Alim Pedro ou brincando de funda nos terrenos baldios da vizinhança. As mesmas molecagens, as mesmas sacanagens, as mesmas "empulhadas".

Reverenciei as novas tecnologias de comunicação por me propiciar esse reencontro, algo que seria impossível no tempo dos namoros por carta. Fez-me bem ver que, no espírito, somos iguais àquela época. Porque, na verdade, os homens nunca se tornam "sérios". Os homens, no fundo da alma, continuam imaturos, bobos e até ingênuos. Querendo ter 12 anos de idade para sempre. O que é muito bom.

DAVID COIMBRA

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