sábado, 2 de maio de 2020




02 DE MAIO DE 2020
DIÁRIOS DO MUNDO - FÁBIO MENDES MARZANO, Embaixador responsável pelo grupo de crise do Itamaraty

"Me sinto muito contente por não deixar nenhum brasileiro para trás"


De uma hora para a outra, brasileiros ficaram sem hospedagem do outro lado do mundo, porque os hotéis em que estavam foram obrigados a fechar as portas por ordem de governos devido à pandemia. Não havia como voltar porque as companhias aéreas cancelaram os voos. Aeroportos estavam desertos, fora de operação.

Esses foram alguns dos desafios enfrentados pelos diplomatas brasileiros para trazer de volta ao país mais de 17 mil cidadãos retidos em cinco continentes por causa da crise do coronavírus.

A maior operação de repatriação da história do Brasil teve a coordenação do embaixador Fábio Mendes Marzano (foto), 55 anos, carioca à frente do G-CON, grupo especial de crise para assuntos consulares e migratórios, criado pelo Ministério das Relações Exteriores. Com a experiência de ter trabalhado em postos de Madri, Lima, Caracas, Washington e Paris, Marzano comandou o fretamento de 23 voos até agora, entre eles seis contratados da TAP para trazer mais de 1,3 mil brasileiros de Portugal. Desde 21 de março, o governo investiu R$ 47 milhões nas operações. Cerca de 3,7 mil cidadãos ainda enfrentam problemas para retornar. Segundo o Itamaraty, não há prazo para o término das repatriações. Em entrevista à coluna, Marzano conta os bastidores da operação, que envolveu 300 diplomatas.

Como o Itamaraty se organizou para repatriar os cidadãos?

Houve pouco tempo. Nosso ministro (chanceler Ernesto Araújo) resolveu estabelecer um grupo de crise, porque começamos a receber informações de consulados e embaixadas que estavam sendo procurados por brasileiros cujos voos haviam sido cancelados. Eles estavam ficando sem opção. O ministro determinou que eu criasse e coordenasse esse grupo, que se estabeleceu rapidamente. Convocamos umas 50 pessoas, hoje temos mais de cem colegas diplomatas trabalhando nas operações em Brasília. A maioria de casa, mas pedimos à administração os números de celulares e, com isso, conseguimos fazer um esquema 24 horas. Colocamos todos esses colegas em uma espécie de plantão intensivo permanente.

E nos consulados e embaixadas como se organizaram?

Se contarmos os colegas nos postos, dá mais de 300 participando desse grupo de crise. Colocamos um formulário online na nossa plataforma consular para que qualquer brasileiro em dificuldade pudesse se inscrever e explicar sua situação, onde estava, informar seu número de passaporte, telefone, e-mail de contato.

Quais foram as dificuldades?

Primeiro havia a dificuldade da demanda em si, atender a tantas pessoas. Foi necessário ter todo esse contingente de colegas atendendo. Nem todos estavam treinados para esse tipo de trabalho consular. Tivemos de, muito rapidamente, explicar como atender ao telefone, o que dizer às pessoas, que dados anotar. A segunda dificuldade foi obter recursos. Fizemos um ofício, pedindo recursos extraordinários. Estimamos que seriam necessários R$ 50 milhões. Encaminhamos para a Economia e, por meio do gabinete de crise da Presidência, o ministério agilizou (a verba). Em poucos dias, tínhamos esse crédito extraordinário. Nossas ações ordinárias do orçamento não permitem esse tipo de gasto. Vencida essa etapa, a terceira foi começar a examinar as possíveis rotas, as situações de maior emergência, os maiores grupos. Tudo isso no mundo inteiro. Não dá para priorizar um país. Pode-se ter apenas cinco brasileiros, mas eles estarem em situação dramática. Então, você tem de atender rapidamente.

Qual foi a operação logística mais complicada?

Acho que foi o voo da Ásia, que envolveu Katmandu (Nepal), Bali e Jacarta (Indonésia). A empresa que fez o menor preço, não sei se não tinha muita experiência, nos deu muito trabalho para conseguir autorizações, sobrevoos, pernoite de tripulação. Teve de mudar de rota. Tivemos de trazer pessoas em outro avião de Katmandu, coordenar horários para que saíssem da aeronave e pegassem outra em Bali. Outros aviões pequenos trouxeram pessoas que estavam em ilhas da Indonésia. Para que, de lá, fossem para Jacarta. 

Foram várias pequenas operações. Tudo tinha de ser muito coordenado, às vezes com poucas horas para coordenação. Outra grande dificuldade foi o fato de os países estarem praticamente sem operação aeroportuária. A empresa (companhia aérea) que você contrata tem de conseguir tripulação, parte está infectada, em quarentena. Os aeroportos não têm toda aquela cadeia logística de apoio. Então, tínhamos, por meio da embaixada, de fazer gestão com o governo local. Não só pedir autorização para sobrevoo, mas para operar os aeroportos. Em todos esses voos, praticamente os aeroportos estavam desertos. Eram abertos somente para nós.

Não foram usados aviões da Força Aérea Brasileira (FAB)?

De Wuhan, aeronaves de reserva da Presidência resgataram aqueles 30 brasileiros. No início de março, houve o caso de um brasileiro retido no Irã, no qual tivemos de atuar. Envolveu várias embaixadas por causa de sobrevoos. Em seguida, começou toda essa operação. A FAB nos ajudou em Cusco (Peru), onde havia brasileiros retidos. Não se conseguia mais voo comercial. A FAB mandou dois Hércules, que conseguiram resgatar todos os brasileiros.

O senhor já havia participado de algo desse tipo?

Havia atuado em algumas operações no passado, na Líbia, mas coordenando todo o esquema, não. Até porque é algo inédito para o Itamaraty. Nunca tínhamos fretado um voo para repatriar brasileiros. Nunca tinha acontecido isso antes na nossa história. Também nunca houve uma pandemia que obrigasse retorno em tão curto prazo de milhares de brasileiros.

Em 2006, o Brasil resgatou brasileiros que estavam no Líbano, durante guerra com Israel. Mas esta operação é diferente.

Pelo ineditismo, pelo tipo de operação, de logística envolvida e negociação. Pela magnitude também. Da noite para o dia, tivemos de acionar, ao mesmo tempo, toda a rede de postos brasileiros em cinco continentes. A vantagem é que temos essa rede habituada a atuar em casos consulares. Mas é como se, de repente, em dois meses, tivessem se concentrado todos os casos consulares de anos. Milhares de pessoas demandando. Não foi só repatriação. Temos gastado com assistência consular. Porque muitos desses brasileiros foram expulsos de hotéis, às vezes já até tendo pago, mas o estabelecimento foi obrigado a fechar as portas pelo governo local. Principalmente em países onde houve toque de recolher mais rígido. Então, a pessoa foi para rua, e a embaixada teve de providenciar abrigo. Pessoas também começaram a ter falta de medicamentos. Não tinham mais recursos, o cartão de crédito já tinha esgotado o limite.

Como foi?

Aconteceu com muita gente. Na Europa, mas também na Ásia. Às vezes, o hotel era obrigado (a fechar). Também aconteceu o contrário: muitos brasileiros que estavam em Cusco não puderam sair do hotel porque foram diagnosticados com o vírus. Nesse hotel, houve até um estrangeiro que morreu. Então, o governo peruano impôs a quarentena, e esse grupo de brasileiros não podia voltar. Não tinham autorização para nem sequer sair do estabelecimento. Tiveram de cumprir a quarentena. Na semana passada, foram liberados, então conseguimos trazê-los.

Como o senhor se sente, do ponto de vista pessoal, ao liderar essa operação?

Me sinto muito contente de ter essa oportunidade, por não deixar nenhum brasileiro para trás. É um aprendizado. A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) tem nos ajudado nos contatos com as homólogas dos outros países, com empresas aéreas. A gente aprende até sobre logística, rotas, aviões. É interessante.

RODRIGO LOPES

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