sábado, 9 de maio de 2020


09 DE MAIO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

SHIVA E DIONISO

Os deuses do panteão hindu são parentes da família olímpica, potências celestiais presididas por Diaush Pitar, forma sânscrita de Zeus pater, Júpiter e Deus pai. Os hindus pertencem à nossa família linguística, o indo-europeu, o que explica as similaridades, em que pese a distância geográfica entre a Índia e nosso berço cultural, o Mediterrâneo. Quando Alexandre Magno chegou aos confins da Pérsia, junto ao Rio Indo, os gregos chamaram Shiva de Dioniso indiano; Baco, por sua vez, era tido como o deus que veio do Oriente. 

Essas conexões foram bem estudadas pelos historiadores das religiões, especialmente Alain Daniélou, autor do célebre Shiva e Dioniso (1984). Não é demais lembrar que todos os deuses são representações culturais com qualidade simbólica, que ajudam a organizar a imagem do mundo e pensar nossa condição e destino, tanto individual como social. Diante disso, a pergunta: o que Shiva e Dioniso simbolizam e o que têm a dizer para o mundo atual?

Shiva significa a unidade e as forças do universo, em movimentos de preservação, destruição e renovação. Essa dinâmica permite ver os ritos que arrasam, pelo fogo ou pelo sacrifício, como parte de um ciclo do qual emerge nova condição do mundo, restaurado. Há nisso também simbologias dos mistérios de morte e ressurreição, de Osíris, Dioniso ou Cristo, conforme cada folclore. 

Essa visão simbólica aplica-se a muitos processos naturais e sociais, nos quais há metamorfoses em que as formas antigas são superadas em proveito da renovação. Incluir a destruição em uma narrativa sagrada que a conecta ao ciclo cósmico de revitalização significa ver um propósito no fluxo do tempo e um sentido positivo em cada momento do drama, inclusive neste usualmente percebido como negativo, a destruição. No mundo grego, esse é o sentido do trágico, o aniquilamento como parte do culto de Dioniso, de cujas cinzas renasce a vida, como a videira que reverdece após a hibernação. A tragédia grega, arte de Dioniso, é o templo filosófico da democracia, um regime que se investiga, produz a crise e se transforma.

Mas os deuses são, antes de tudo, nomes. Estabelecido o nome, a fantasia cultural pode dotá-lo de todos os atributos que desejar e depois perpetuar sua memória sob a forma de mitos, imagens e ritos. O significado do nome, portanto, revela a identidade imaginada. No caso de Shiva, temos uma das entidades mais complexas de toda a história das religiões, mas uma etimologia de seu nome enraíza o significado da palavra Shiva, do II milênio a.C., na composição de Shi, o que reside em tudo, com svi, o gracioso. O nome transmite o sentido de auspicioso, benigno, amigável. A destruição terá um propósito, se for, como simboliza Shiva, auspiciosa.

Eis agora Shiva dançando sobre a Terra e sobre a nação. E eis a tragédia grega, altar de Dioniso, esclarecendo mito e política: o problema concentra-se no poder, sua violência e seus vícios e artimanhas, e é ele que tem que ser aniquilado, para renascermos com graça renovada, entre Oriente e Ocidente, e como o terceiro olho de Shiva, entre passado, presente e futuro.

FRANCISCO MARSHALL

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