sábado, 9 de abril de 2022


09 DE ABRIL DE 2022
J.J. CAMARGO

CUIDE DA SUA PRÓPRIA MORTE

Cada vez que seu Antônio internava na UTI do Pavilhão Pereira Filho, nos primórdios dos anos 1980, era uma chance imperdível de renovar o fascínio que envolve alguns casais encantados que alcançaram a plenitude do carinho compartilhado. O desvelo da Maria do Carmo comovia e estava explícito nos gestos mais simples, como pentear o cabelo ralo com os dedos magros, ou desfazer cada dobra indesejada no lençol.

Naquele ano, o enfisema progressivo chegara ao limite, e o encurtamento entre as internações prenunciava o fim. Mesmo assim, cada alta para casa merecia uma comemoração das enfermeiras, capitaneada pela Do Carmo, que se despedia com olhos de gratidão e palavras de esperança que cada vez mais pareciam distantes da realidade.

Em geral, tínhamos duas semanas de sossego, anunciando aquela pausa que todas as doenças crônicas dão - e das quais o enfisema é, sem dúvida, a mais cruel.

E então, numa noite de sábado, o Antônio, arroxeado, trêmulo e confuso, foi outra vez admitido, daquela vez sem o sorriso com que sempre avisava: "Não se assustem, só vim matar a saudade de vocês!". Nunca antes a tristeza tinha sido maior do que a esperança. Mas, ainda assim, a pergunta da Do Carmo me chocou: "Desta vez ele não escapa, não é, doutor?".

Parecia muito improvável a sobrevivência, mas cadê a parceria que todo mundo invejava?

Nunca discuti a reação dela com os colegas de atendimento, mas a mim impactou muito, porque na imaturidade da juventude aquilo me pareceu puro desapego, e o seu Antônio, um queridão feito poço de afeto, não merecia aquele abandono.

Demorei um tempo, e foram exatamente as doenças crônicas que me ensinaram que o sofrimento extremo e sem redenção invariavelmente desperta nos cuidadores mais amorosos a consciência de que a morte, com todo o flagelo da perda, pode ser, sim, a última e a mais dramática das formas possíveis de compaixão. Enquanto toda a dor se tolera quando representa uma barganha para o retorno à vida normal, o sofrimento unicamente como antessala da morte é uma crueldade. Soube, tempos depois, que a Do Carmo tinha morrido subitamente, rodeada de filhos e netos, que a idolatravam. E com isso perdi a última oportunidade de agradecer-lhe a lição.

Mas lembro dela sempre que convivo com o sofrimento desmedido de pessoas boas, em algum desses martírios que até os deuses teriam dificuldade de explicar.

E foi inevitável evocá-la ao ler a história de desespero de Alain Delon, uma figura mítica que no século passado representou o modelo de deslumbramento das meninas e de inveja dos meninos da minha geração, e agora delegara ao filho a responsabilidade de organizar a interrupção assistida de uma sobrevivência que perdera o sentido.

Nas redes sociais, os juízes de plantão, com a maldade sempre engatilhada, ignoram nos vereditos cruéis uma peculiaridade do seu sofrimento: o acidente vascular cerebral que lhe roubou muitas funções orgânicas e, principalmente, motoras não lhe afetou a cognição, de modo que ele, em fraldas, se tornou um testemunho compulsório dos seus escombros deploráveis.

Acho que merece empatia quem sempre se deu ao luxo de escolher os melhores papéis e agora se nega à condição de espectador da sua infinita desgraça.

J.J. CAMARGO

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