sábado, 2 de abril de 2022


02 DE ABRIL DE 2022
ELIANE MARQUES

MÃES, NÃO APENAS DE LEITE

Desde o período formal de colonização até a segunda metade do século 19, no Brasil, as famílias casagrandistas, ou nem tanto, serviam-se da "mãe preta", escravizada feita ama de leite, para fazer viver a prole alheia enquanto sua prole mesma morria. Depois do período, a nascente classe média urbana passa também a se servir de ex-escravizadas domésticas, tornadas amas secas e retornadas babás. Na atualidade, o trabalho não remunerado de "mães de criação", realizado por meninas enegrecidas, diz não apenas da continuidade histórica, mas da constituição psíquica des sujeites brasileires no seio literal de um conflito mal resolvido pelo imperativo categórico amefricano - "age como se tua mãe fosse uma só".

Contudo, assim como entre os povos das Ilhas Trobriand, o pai se desdobra em três - o jurídico, o marido da mãe e o genitor - descoincidentes no dizer de Malinowski; no Brasil, a maternidade se desdobra em duas ou três. Quando me refiro a duas maternidades, falo da mama África ou da mãe Europa; de Maria (a mãe virgem) ou de Iemanjá (a mãe estuprada). Agora, quando me refiro a três mães, evoco a biológica ou a jurídica ou a da criação e do cuidado, como diz Rita Segato em O Édipo Brasileiro: a Dupla Negação de Gênero e Raça. Entre o que afirmo aqui e o clássico de Malinowski, há diferença de uma ou de duas letras: os pais trobriandeses são unidos por uma conjunção aditiva (e); as mães brasileiras são separadas por uma conjunção alternativa (ou).

Se, para a psicanálise, o pai presenta vários nomes que chegam pela boca da mãe, se ele é o estrangeiro que responde pelo rompimento da unidade "mãebebê", um legítimo país das maravilhas; a "mãe preta", por sua vez, responde pela instauração de outra crise, qual seja, a de tornar incerta a maternidade e a filiação des sujeites que se querem super(eu)ropeus a qualquer custo. A "mãe preta" rompe com a fantasia de que os nomes de pais por ela transmitidos sejam tão brancos quanto seu leite (dela). Essa mulher quebra com o ideal de mesmidade em que a amefricanidade, desde seus inícios, quis se banhar. Nesse sentido, no campo da psicanálise amefricana, sua função de constituição des sujeites na alteridade equivale à do Moisés Africano.

O discurso centrado na transmissão de doenças que os higienistas da época associavam às "mães pretas" teve como impacto a substituição delas pelas amas secas. A "preta" (com seu leite) foi jogada para escanteio, como diria Lélia Gonzalez. Contudo, ainda que escanteada, ela está aí. Nada que foi um dia objeto de gozo é abandonado. Mas qual a doença tão temida pelos higienistas e transmitida pelas "mães pretas"? Certamente eles foram criados por essas mulheres. Certamente a doença por elas transmitida se constituía e ainda se constitui naquele conjunto de sintomas que nos nega a pretensa unidade fundante. Por isso, para eles e ainda para nós, mãe deverá ser uma só, ainda que sejam múltiplas. Essa é uma das facetas da denegação do buraco que há em nossas identidades.

ELIANE MARQUES

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