sábado, 10 de julho de 2021


10 DE JULHO DE 2021
COM A PALAVRA

HOUVE, SIM, UMA FILOSOFIA GAÚCHA

LUIZ OSVALDO LEITE, professor emérito da UFRGS, 88 anos Filósofo e pesquisador, é um dos principais intelectuais do Estado, tendo exercido, entre outras funções, a presidência da Ospa. Prepara uma série em 10 livros sobre a história da filosofia no RS

É difícil satisfazer a necessidade jornalística de descrever em poucas palavras quem é Luiz Osvaldo Leite. Professor emérito da UFRGS, além de ter lecionado em outras instituições; ex-presidente da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa); ex-diretor da Divisão de Cultura de Porto Alegre (depois, Secretaria Municipal de Cultura) e ex-jesuíta que deixou a ordem para formar uma família, professor Leite - como é conhecido no meio cultural - construiu um legado na inteligência do Estado. Aos 88 anos, não dá seu trabalho por concluído. Pretende publicar, até o fim do ano, o primeiro volume de uma história da filosofia no Rio Grande do Sul, tema que pesquisa há quase 50 anos. Projeta uma coleção em 10 tomos, um deles dedicado à atuação de filósofas mulheres. Para contar sobre esse projeto e lembrar sua trajetória, concedeu a seguinte entrevista por telefone a Zero Hora.

Há décadas, o senhor pesquisa a história da filosofia no Estado. Como está o projeto dos livros sobre o assunto?

São quase 50 anos. Essa pesquisa começa com a minha própria vida. Muitos dos pensadores que estou registrando foram meus professores ou colegas de universidade. Já tenho praticamente pronta uma grande cronologia da filosofia no Estado. O Rio Grande do Sul, sob o ponto de vista cultural, está um pouco atrasado em relação a outros Estados porque sempre foi um território de guerra. Até nossa arquitetura sofreu. Não havia coragem de fazer casas como eram as casas grandes e senzalas do Nordeste. As igrejas, se comparadas às de Recife, Salvador, Minas e Rio, são mais modestas. Porque éramos um território de disputa. Então, nossa história cultural é do final do século 18, do século 19 em diante. Com a filosofia, é a mesma coisa.

COMO COMEÇOU ESSA PESQUISA?

Devo dizer que comecei um pouco entristecido, porque nos congressos dos quais participava, quando se falava em filosofia do Brasil, só se falava em Rio e São Paulo. A exceção era Recife, com a escola de Tobias Barreto. Do Rio Grande do Sul ninguém falava. Não quero dizer que a filosofia do Brasil ou do Estado atingiu o nível da filosofia de Alemanha, França, Itália, Inglaterra. Mas houve, sim, uma filosofia. Então, eu ficava um pouco magoado porque não se registrava o pensamento gaúcho. E, no entanto, tivemos pensadores aqui. Isso me levou a reunir material, bibliografia, a ir entrevistando pessoas.

Sobre o que será o primeiro volume?

O primeiro volume, que está praticamente pronto, é uma grande cronologia de 200 anos de filosofia no Rio Grande do Sul. Com acontecimentos, instituições. Depois que faço a cronologia do Estado, faço uma cronologia comparada - entre o Rio Grande do Sul, o Brasil e o mundo - para sentir se há, talvez, uma correlação. Augusto Comte, por exemplo, fez filosofia na França e repercute aqui. Kant também. Há kantismo no Brasil.

QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS DESCOBERTAS DESSE VOLUME?

A descoberta é revelar o que ninguém fala. Temos, no Estado, estudos valiosos em diferentes áreas, como artes plásticas, arquitetura, cinema, teatro, música. Mas, curiosamente, em filosofia não há quase nada. Então, fui descobrindo e reunindo material de Porto Alegre. E do Interior, de Pelotas e outras cidades. No século 19, começam algumas obras de valor, em três correntes, eu diria. Na segunda metade do século, tem o positivismo. Júlio de Castilhos e outros têm grande influência. O positivismo é talvez o movimento que foi mais estudado não só por gaúchos, mas por brasileiros em geral. Outra corrente é a católica, principalmente a escolástica, inclusive polemizando com o positivismo. E a terceira corrente é o materialismo científico, que também se desenvolve aqui. Isso desemboca em um fato importante, que é a fundação da universidade, a futura UFRGS, que tem grande influxo filosófico do positivismo.

E OS OUTROS VOLUMES?

O segundo volume será sobre a filosofia no século 19 e o terceiro, no século 20. No século 19, a filosofia gaúcha estava dentro de outras faculdades, como Medicina, Engenharia e Direito. No século 20 começam as próprias instituições filosóficas. Esses volumes acho que são para o ano que vem. Depois, tem outros. Um volume será sobre regionalização e instituições formadoras, em que falarei sobre como foram formados cursos no Interior, com atenção a Pelotas, Passo Fundo, Santa Maria, Vale do Sinos, Caxias. A regionalização está ligada às faculdades. Depois, vem um volume, do qual tenho um pré-projeto pronto, sobre mulheres filósofas. Nos poucos escritos que se tem, fala-se muito em homens. A filosofia é, antes de mais nada, masculina. No século 19, temos no Estado quatro ou cinco mulheres que trataram de temas éticos, mas no século 20 tem bem mais. Já tenho catalogadas quase cem mulheres. Outro volume abordará as presenças nacionais na filosofia gaúcha - alemã, italiana, francesa, judaica, italiana, e assim por diante, além dos teuto-brasileiros, ítalo-brasileiros e franco-brasileiros. Esse volume será relativamente inédito, porque mesmo em nível nacional não se tem tratado desse assunto da forma como vou tratar. Vai ter outro volume do que eu chamo de filosofias especiais: filosofia da arte, do direito, da administração, psicológica, sociológica. Ramos filosóficos que se desenvolveram. Outro volume está praticamente pronto porque, nesse tempo todo, publiquei muitos artigos, que estão espalhados por aí em antologias e revistas. Isso vou publicar em um volume que vou chamar de Inéditos e Dispersos. Um volume mais para o final será sobre o que seria o pensamento gaúcho na visão de intelectuais e escritores. Gente que escreveu sobre filosofia no Estado. E tem um 10º volume que estou chamando de Bibliografia, talvez o único que não será impresso. Tem que ser em e-book porque é uma obra que não termina nunca. Agora, veja: estou com 88 anos. Mas estou saudável. Minha cabeça está muito boa, minhas pernas, nem tanto. Meus amigos e minha mulher dizem: "Começa com um volume. Não adianta sonhar com seis, sete".

O SENHOR DOMINA DIFERENTES ÁREAS DO CONHECIMENTO. ISSO ERA CARACTERÍSTICA DE OUTROS COLEGAS DA SUA GERAÇÃO, FORJADA ANTES DA DITADURA MILITAR, MAS É SURPREENDENTE HOJE, EM UM MUNDO DE SUPERESPECIALIZAÇÃO. EM QUE CONTEXTO SE DEU SUA FORMAÇÃO?

A primeira faculdade de Filosofia local foi a da PUCRS, em 1940. A segunda é de 1943, do Estado, que depois fica federal (UFRGS). A própria faculdade de Filosofia abria esse leque (de áreas do conhecimento). Tinha Letras, e dentro delas as letras anglo-germânicas, clássicas, neolatinas. Tinha as pedagogias, as Ciências Sociais com abertura para Ciência Política, Sociologia e Antropologia. Tinha Física, Química. Tinha o Instituto de Artes, criado com o nome Instituto de Belas Artes, subdividido em música, artes plásticas. Depois entrou o teatro. Uma pessoa estudava física e ia assistir a um concerto, ou estudava filosofia e ia assistir a uma palestra sobre ciências. Havia uma preocupação com uma formação mais geral. Não sou formado em Letras, e sim em Filosofia, mas as letras foram fundamentais. Aí tem que botar outro fato: a existência da Livraria do Globo, que trouxe grandes autores. Tu ias lá na livraria e estavam todos aqueles intelectuais. Assim era o diálogo. O Theatro São Pedro era da maior importância, com dança, música, teatro. Isso para não falar de outros teatros importantes. Tinha a Banda Municipal funcionando no antigo Auditório Araújo Vianna. Em Porto Alegre, havia todo um caldo de cultura, que influenciou minha geração. Me formei no Colégio Anchieta, e a gente não tinha dinheiro, mas comprava assinatura na galeria - chamada de "poleiro" - do São Pedro para ver a temporada de ópera. Todos jovens.

O SENHOR FOI SEMINARISTA E FOI ORDENADO SACERDOTE, OFÍCIO QUE MINISTROU, ANTES DE DEIXAR A VIDA RELIGIOSA, APÓS QUASE 20 ANOS. QUE LIÇÕES FICARAM DESSA ÉPOCA?

Primeiro, fica a formação filosófica e teológica. Fica a fé também, porque muitos colegas meus - padres, seminaristas - quando saíram, abandonaram até a fé. Muitos se tornaram agnósticos, ateus. Não foi o meu caso. Quando digo isso, não quero criticar ninguém. Estou apenas revelando o que aconteceu comigo. Tenho um grupo de almoço (de intelectuais) do qual acho que sou o único católico. Também ficou muito para mim o valor da família. E o amor à ciência.

ainda lê em latim?

Sim. Ousaria dizer que talvez seja a língua que mais domino, depois do português. No tempo de seminário, as principais aulas eram em latim. As perguntas aos professores tinham de ser feitas em latim, assim como os exames escritos e orais. Conheço não apenas o latim teórico, de Cícero (pensador da Roma Antiga, 106 a.C.-43 a.C.), mas o da Igreja e o latim coloquial. Outras línguas que a gente precisava saber eram grego e o hebraico. Não para falar, mas para ler os Evangelhos e o Velho Testamento.

COMO FOI SEU ENVOLVIMENTO COM O INSTITUTO DE PSICOLOGIA?

Quando deixo de ser jesuíta, após 19 anos, passo a trabalhar. Trabalhei na prefeitura de Porto Alegre e depois fiz concurso para entrar na universidade. Fui para a Psicologia, não para a Filosofia, porque era época do golpe (militar) e das cassações. Pensei: "Estou começando uma vida nova, não posso estar sujeito a uma cassação" (Leite considerava a área de Psicologia menos visada pelo regime do que a de Filosofia). Na Psicologia, desenvolvi uma carreira. Criei o Instituto de Psicologia e fui seu primeiro diretor (de 1996 a 1998). Depois me aposentei. Assim como pesquiso filosofia, queria pesquisar psicologia, educação. Mas isso não vai dar. Tem outros que estão trabalhando na psicologia, até quero doar material que eu tenho. Filosofia é um mundo: tem existencialismo, materialismo, marxismo, tomismo, positivismo. Na época nem se falava em ecumenismo. O ecumenismo de ideias faço questão de conservar.

Antes da criação do Instituto de Psicologia da UFRGS, em 1996, a Psicologia era um departamento do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Quais foram os desafios em sua trajetória nessa área?

O grande desafio era afirmar a profissão de psicólogo. A profissão é muito recente, é da década de 1960 (o curso de Psicologia da UFRGS foi criado em 1973). Para efeito de comparação, a Faculdade de Farmácia foi criada em 1895, e a de Engenharia, em 1896. Quem exercia a psicologia no passado? Em geral, profissionais formados em Direito ou em Filosofia. Na área da psicanálise, quem atuava era o pessoal da Medicina, os formados aqui e também um grande grupo formado em Buenos Aires. O segundo desafio foi introduzir Freud no curso de Psicologia. Freud não era bem recebido pelos próprios docentes, havia grande influência da psicologia americana. Hoje, tem psicanalistas que me dizem: "Quem me apresentou Freud foste tu, Leite". Um terceiro desafio, por fim, era trazer professores. No início, éramos apenas seis. Cheguei a lecionar 12 disciplinas, era um absurdo. Hoje, com mais de 60 professores, o Instituto de Psicologia tem prestígio nacional e até internacional.

O senhor tem uma longa relação com a Ospa. Assistiu a seu primeiro concerto, há mais de 70 anos, e foi seu presidente. Como foi a trajetória de fã a gestor?

Assisti ao primeiro concerto da Ospa (em 1950) com o maestro Pablo Komlós, húngaro que havia se refugiado do nazismo e do comunismo no Uruguai. Ele veio reger em Porto Alegre e, vendo o capital musical que havia aqui, fundou a Ospa. Sempre faço questão de registrar que as comunidades mais valiosas para a fundação da orquestra foram a judaica e a alemã. A II Guerra havia terminado em 1945, mas nunca ouvi falar dos alemães criticando os judeus ou vice-versa. A Ospa tinha músicos de ambas as origens, e, claro, argentinos e uruguaios. Quando fui trabalhar na Divisão de Cultura da prefeitura, o então secretário (de Educação e Cultura de Porto Alegre) Frederico Lamachia me designou para ser conselheiro da Ospa, e passei a ter conhecimento da administração da orquestra. O conselho era fantástico: tinha o P.F. Gastal, a Eva Sopher, o Celso Loureiro Chaves. O presidente da Ospa (de 1975 a 1981) era o Oswaldo Goidanich. Certa vez, estávamos em um almoço no (restaurante) Copacabana, e o Luiz Pilla Vares (então secretário estadual da Cultura), que tinha sido meu aluno no Anchieta, me convidou para ser presidente da Ospa. Foi uma alegria e uma honra. Eu, que tinha 17 anos quando a Ospa havia sido fundada e que assistia à Ospa nesse tempo todo, de repente fui brindado com a presidência (Leite ocupou o cargo de 1999 a 2001). Mais tarde, quando o Ivo Nesralla ocupou pela segunda vez a presidência da Ospa (de 2003 a 2018), ele criou a Fundação Pablo Komlós (em 2004, por sugestão do então Ministério da Cultura) para buscar recursos. Depois do Lauro Schirmer, fiquei presidente dessa fundação (de 2006 a 2018). Quando o projeto da Sala Sinfônica não se concretizou, o maestro atual (Evandro Matté) teve a ideia da atual sala de concerto, que está aí, servindo muito bem à comunidade.

quais foram os concertos mais marcantes?

O primeiro foi um da década de 1950 em que eles tocaram a Abertura 1812, do Tchaikovsky, no Araújo Vianna. Nessa música, a orquestra faz os sons dos canhões, mas naquele concerto foram sons de canhões de verdade. Outro, também no Araújo Vianna, foi a execução da ópera Aida (de Verdi, nos anos 1960). O desfile da marcha triunfal contou com animais de verdade. Também ressaltaria a primeira execução da Nona Sinfonia de Beethoven pela Ospa (nos anos 1950). Komlós era apaixonado por Beethoven, como não poderia deixar de ser.

Como tem sido a rotina de uma pessoa intelectualmente inquieta como o senhor durante a pandemia?

Minha vida não mudou muito. Estou com 88 anos, me aposentei aos 70, a idade da aposentadoria federal compulsória na época - agora é 75 anos. Dei aula na pós-graduação até quatro anos atrás, mas agora não mais. Então, o que faço? Minha vida é basicamente uma vida intelectual, de pesquisa, escrita. Também sou membro de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico do RS, a Academia Rio-Grandense de Letras e o Cipel (Círculo de Pesquisas Literárias), que passaram a fazer reuniões online. O que diminuiu um pouco foi a parte das atividades culturais. Assim mesmo, cinema e música tenho visto pela TV. O que cortei foram jantares com amigos. Agora o contato é por telefone.

EM 2012, O SENHOR PUBLICOU UMA AUTOBIOGRAFIA INTITULADA OCTOGESIMA ADVENIENS, CHEGANDO AOS OITENTA.... (EDITORA ENTREMENTES). PRETENDE ATUALIZÁ-LA PARA O SEU ANIVERSÁRIO DE 90, NO ANO QUE VEM?

Talvez. Não vou repetir o que está nesse livro, mas quero complementá-lo com alguma coisa que não tenha saído. Tu vês que não são poucos os meus planos. Aquela autobiografia foi uma provocação do meu filho. Tive dois filhos. Um deles faleceu tragicamente num desastre de automóvel, aos 24 anos (em 1997). Tenho outro filho que é advogado e me provocou na época: "Pai, não conheço direito a tua biografia". Isso me fez escrevê-la.

O SENHOR ESTÁ OTIMISTA, PESSIMISTA OU NEUTRO COM RELAÇÃO AO FUTURO DO BRASIL?

Muito pessimista. Vivi muita coisa. Quando era criança, peguei a era do Getúlio (Vargas) ditador. Vivi o Estado Novo, a Constituinte nacional de 1946, veio o golpe de 1964, com todos os problemas. Vi a restauração do regime democrático (em 1985), e agora estamos vivendo todos esses dramas. Claro, meu desejo e esperança é de que o Brasil supere todos os seus problemas. Mas sou muito contrário a essa radicalização de dois polos. E, claro, estou muito preocupado com a área da cultura. Sofremos muito nos últimos tempos. Veja a Fundação Palmares, a área do teatro, a Funarte, a área do cinema, que tinha evoluído tanto no Brasil, a própria área da música. Até um ícone como a Fernanda Montenegro tem sofrido. Pelo amor de Deus, é um descalabro.

FÁBIO PRIKLADNICKI

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