sábado, 10 de julho de 2021


10 DE JULHO DE 2021
CLAUDIA TAJES

O Ocidente resiste

Porto Alegre é uma cidade cheia de buracos na memória. A gente passa algum tempo fora e, quando volta, cadê aquela livraria que estava aqui?

Ou aquele bar. Aquele restaurante. Aquele café.

Teve um tempo em que, quando um lugar querido fechava, havia uma verdadeira comoção. Os clientes ficavam inconsoláveis por dias, meses, pela vida toda, até. Os que tinham o hábito de ir a determinado restaurante em um dia fixo da semana, por exemplo, viviam uma espécie de luto sempre que chegava a terça, a quinta, o sábado.

Até hoje corre uma lágrima quando alguns lembram do restaurante alemão Floresta Negra, e de seu proprietário, Fredolino, que tratava os clientes com a oposta delicadeza dos linguados que servia. No segundo andar da mesma galeria, na 24 de Outubro, O Archote era um restaurante português que, além da boa comida, tentava a galera com um carrinho de sobremesas que percorria o salão. Onde arrumar espaço depois do bacalhau ao molho de natas? Mas a gente arrumava, e depois fazia aquela aeróbica toda dançadinha na academia para aliviar a culpa.

Eram tempos mais leves. Isso apesar do milk-shake do Rib?s, dois por dia nos tempos de juventude explícita.

O Sanduíche Voador, no Moinhos de Vento, deixou saudade pelo cardápio e por todos os encontros marcados lá com as amigas. Digo o mesmo do Orquestra de Panelas, restaurante do Adolfo e do Mario. E do Café do Porto, da Cacaia. O circuito Elizabeth Arden do Moinhos não era coxinha, definição que ainda nem existia. Era mais uma ideia de bom gosto, e de se poder pagar por aquilo tudo sem deixar as calças ou sangrar o cartão de crédito.

Eram tempos mais divertidos. Ou apenas éramos todos mais novos, e inconsequentes, e mais felizes.

No fim de semana, balançar o esqueleto no Elo Perdido, ali na Garibaldi, era sempre um bom programa. Mas difícil mesmo de recusar, até nos sábados mais gelados, era dar um pulo no Ocidente, o bar que nunca mudou de endereço e que viu seus frequentadores passarem de quase adolescentes aos vacinados e vacinadas de hoje. O Ocidente foi palco de artistas e bandas e também do amadurecimento de seus inúmeros, e fieis, clientes.

Então veio a pandemia e o mundo deixou de ser como a gente um dia o conheceu. Impossível contar quantos bares, restaurantes, academias, cafés, lojas, pequenos negócios fecharam as portas para sempre. Quem estava conseguindo se manter foi surpreendido por um aumento absurdo de aluguel, como aconteceu com uma amiga. Ou pela alta de preços dos insumos. É como subir o preço da lona nas tragédias em que as pessoas perdem tudo e precisam se abrigar em barracas, como tantas vezes já se viu. Sempre há quem veja a oportunidade na crise.

Um salve aqui para as livrarias de rua que seguem abertas, embora tudo. Lembrando que duas delas, a Baleia e a Taverna, lançaram financiamentos coletivos com livros de recompensa para quem der uma mão nesse momento. A Taverna, aliás, mudou para a Casa de Cultura Mario Quintana, e está linda.

Pois bem. Chegou a vez do bar Ocidente, que até então vinha se equilibrando na corda bamba desses dias, lançar um SOS. Depois de 14 meses sem abrir, um festival online pretende arrecadar uma graninha para pagar os atrasados e trazer um fôlego enquanto a vacina não chega para todos. O festival, que se chama Socorro Ocidente Show, terá mais de 40 apresentações de artistas em duas noites, 16 e 23 de julho. A partir de R$ 20, você compra o show no Sympla e assiste quantas vezes quiser, por 48 horas. Entre os confirmados, Adriana Deffenti, Wander Wildner, Os The Darma Lóvers, DeFalla, Os Replicantes, Frank Jorge e tantos nomes mais que é melhor ver tudo aqui: gzh.rs/Ocidente.

Talvez por tantas histórias vividas lá, não consigo imaginar a esquina da João Telles com a Osvaldo Aranha sem o casarão do Ocidente iluminando a rua. Porto Alegre é uma cidade com muitos buracos na memória. Mas alguns deles, e são tantos, também apertam o coração.

Cai uma lágrima.

CLAUDIA TAJES

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