sábado, 10 de julho de 2021


10 DE JULHO DE 2021
ELIANE MARQUES

Pudor e vergonha

Em 1927, sua vida se dá na cozinha de Inácia, mulher com camarote de luxo reservado no céu. E ex-proprietária de gente. Apesar de virtuosa, a senhora não suporta o choro da criança. Mal o ouve e já berra a ponto de que Cesária, a escravizada-mãe, corra para o quintal com as mãos sobre a boca da rebenta. Perdida a mãe, a filha é imobilizada na sala, aos pés de Inácia. Como o ímã atrai o aço, a miudeza de seu corpo atrai maus-tratos, diz Lobato, o autor de Negrinha. Para matar as saudades da escravidão, às vezes Inácia inventa castigos maiores, como a ocasião em que enfiou um ovo fervente na boca da menina. Quando suas sobrinhas chegam à casa para férias, autoriza-se Negrinha a brincar com elas, pois, ao vê-la com uma boneca linda e loura nos bracinhos, a senhora se demove do desejo de sempre castigá-la.

Em 2021, resgatada da morte pela escritora Ana Maria Gonçalves (em Negrinha! Negrinha! Negrinha!), a vida da órfã se dá em boa casa, entre bons pai e mãe, tão brancos quanto Inácia. Mas, ainda que nomeada Maria, a menina continuava negrinha, piolhenta e outras adjetivos do jaez usados no intuito de brincadeira, como a de obrigá-la a engolir um ovo. Tal ideia fora inspirada às escolares pela leitura de um conto chamado Negrinha, de Lobato. Maria se negara a revelar o ocorrido aos adultos sob a justificativa de que a culpa fora sua. Assim resguardava a suposta amizade com as colegas. Sua madrinha racializada é quem introduz a vergonha na discussão entre aqueles que não querem ver.

Não há experiência de vida sem corpo. Apenas quem tem corpo sente vergonha. Mas a questão é o motivo pelo qual somente o corpo de Negrinha se sente envergonhado, desvelado, como se os demais corpos narrados estivessem sempre cobertos por um pudor que atravessa os séculos.

Negrinha relata a insuficiência de um corpo diante da dona de gente escravizada, de suas sobrinhas, diante de seus pais, das colegas de escola e dos profissionais da educação. Negrinha relata a miséria de não corresponder ao ideal da perfeição (Eu ideal) reinante em nossa cultura e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de abandoná-lo. Esse corpo que passa de um texto a outro, em ambos é vivido como um estrangeiro, como uma costumeira habitação do mal-estar. A vergonha revela a falta que marca a imagem de Negrinha diante do que se revela no espelho do olhar (das outras). Contudo, quem se vê nessa imagem não é apenas aquela que se sente faltosa, mas também quem tampona a falta com a ilusão de completude.

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