sábado, 10 de julho de 2021


10 DE JULHO DE 2021
MARCELO RECH

A urna na sala

Os brasileiros tinham pelo menos três boas razões para se orgulhar de contribuições tecnológicas para o avanço da civilização: a abreugrafia - método barato de detectar a tuberculose -, o Imposto de Renda em disquete e uma urna eletrônica simples e eficaz que pôs fim ao inferno das apurações manuais e aos estranhos fenômenos de abdução de votos e transmutação de cédulas eleitorais.

A abreugrafia caiu em desuso e o IR evoluiu para online e tornou-se lugar-comum no planeta, facilitando a vida de declarantes e complicando a de sonegadores. Mas agora o presidente Jair Bolsonaro se empenha em desmoralizar uma tecnologia que, a exemplo da abreugrafia e do IR digital, deveria evocar o orgulho verde-amarelo.

Como nunca se evidenciou qualquer traço de fraude nas urnas eletrônicas brasileiras, que aliás registraram os votos que elegeram sucessivamente Bolsonaro deputado e presidente, resta a inefável conclusão: quando não se entende as razões de um comportamento, é porque algo não quer ou não pode vir à tona.

Não é novidade que o presidente absorve teorias da conspiração e põe o peso de seus cargos a serviço de teses como a "pílula do câncer", a cloroquina no tratamento da covid ou um complô por trás da facada - todos, apesar de grande esforço oficial para atestá-los, sem qualquer comprovação. Como virou presidente pela urna eletrônica, Bolsonaro também não tem como afirmar que sua eleição foi fraudada. Resta sustentar que obteve mais votos do que o registrado, sem qualquer indício e muito menos prova, como de hábito.

Agora, Bolsonaro emula mais uma vez Donald Trump por uma razão que ele não quer e não pode admitir. As pesquisas indicam um cenário de grande dificuldade para o presidente em 2022. Não é só o arquirrival Lula que encabeça hoje a disputa - um fato que, do ponto de vista prático, a mais de um ano das eleições, se trata apenas de uma curiosidade. O problema maior de Bolsonaro é a curva de tendência que mostra a erosão de sua popularidade. Como agravante, não há mais orçamento capaz de distribuir os muitos bilhões que avivaram seu apoio nas massas em penúria do ano passado.

Nada garante que o quadro atual permaneça como está quando a corrida eleitoral começar para valer. Lula tanto pode se eleger em primeiro turno como desabar. Um novo nome pode despontar, tirar Bolsonaro do jogo e disputar o segundo turno com Lula, com reais chances de levar a Presidência com apoio do centro e da direita. Até mesmo Bolsonaro, se passado o trauma coletivo do coronavírus, implodir o caixa e o futuro, e ainda assim represar a inflação, pode recomprar a popularidade. Mas, sem um milagre, é improvável que sua curva volte a apontar para cima. Diante do cenário que se antevê, Bolsonaro resolveu então tirar a urna da sala.

MARCELO RECH

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