sábado, 3 de julho de 2021


03 DE JULHO DE 2021
DAVID COIMBRA

É preciso dividir a vida

Já vi crepúsculos. Repare que sou de uma cidade que se orgulha do seu pôr do sol e, de fato, é bem bonito o entardecer às margens do Guaíba. Além disso, vi o sol se deitar atrás dos montes e em frente ao mar, o que também é belo. Mas houve um dia em que um crepúsculo me encantou mais do que todos. Eu estava em Brookline, onde morava, fazendo coisas na rua. Decidi, então, tomar um café em um lugar do qual gostava muito, chamado Allium. Tudo lá era bom, tudo, mas a mufaletta era imbatível.

Assim, pensando nas delícias da mufaletta, atravessei a primeira faixa da avenida e parei no canteiro, esperando que o sinal abrisse para mim. Aí, olhei para o lado, para o horizonte e lá estava ele: o sol. Imenso, cor de laranja, colorindo o mundo em diversos tons de púrpura e amarelo. "Oh!", exclamei, e prendi a respiração. Notei que, ao meu lado, no canteiro, as pessoas sacavam de seus celulares para filmar a cena. Peguei do meu também. Mas não para filmar. Liguei para a Marcinha:

- Tu estás na rua?

- Estou.

- Então vem aqui pra Beacon, na frente do Allium. Tu precisas ver esse pôr de sol!

- Mas eu acho que posso ver daqui.

- Não, não, onde estou é o melhor ângulo. Está incrível. Vem pra cá depressa!

E ela veio. Veio rápido, andava por perto. Parou na esquina e chamei:

- Aqui! Aqui!

O sinal estava fechado. Enquanto ela esperava abrir, o planeta continuou girando, como faz há 4 bilhões de anos, e o sol foi se escondendo na linha do horizonte. Quando ela enfim chegou, metade do corpo do sol já estava lá embaixo, iluminando o Japão.

- Que lindo! - ela disse.

- Mas estava muito mais lindo antes - respondi. - Pena que tu perdeu...

Lembro bem desse pôr do sol, mas não exatamente por causa da sua beleza, e sim porque chamei a Marcinha para vê-lo.

Por que fiz isso?

Porque precisava de uma testemunha daquele momento. Precisava compartilhar aquela beleza para que, mais tarde, alguém lembrasse dela junto comigo.

É o que torna a vida real. Se você vive algo maravilhoso e guarda só para si, se ninguém sabe daquela experiência, ela começa a desaparecer. Logo, até sua própria memória passa a duvidar de que aquilo foi real.

As redes sociais cumprem um pouco essa tarefa. Quando as pessoas postam fotos dos seus pratos de comida, elas estão, na verdade, buscando testemunhas: vejam como foi bom o meu almoço. Claro que o melhor seria partilhar a refeição com outras pessoas, para que, mais tarde, elas pudessem comentar não apenas a aparência do prato, mas o sabor. Em todo caso, as redes sociais conseguem atenuar um pouco a solidão.

Um pouco.

Porque o ideal é dividir a vida com outras pessoas. Veja como isso é bonito: quanto menos egoísta você for, mais verdadeira será a sua existência. Caso contrário, mesmo o mais belo pôr de sol vai se apagando, vai ficando sem sentido e sem cor. Até parecer que nunca aconteceu.

DAVID COIMBRA

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