sábado, 6 de novembro de 2021


06 DE NOVEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Histórias da Feira do Livro

Faz quase 30 anos que lancei meu primeiro livro na Praça da Alfândega. Era 800 Noites de Junho, sobre o Caso Daudt. Sentei-me atrás de uma mesinha e comecei a fazer dedicatórias para as poucas pessoas que foram lá me ver. Deviam ser umas 20 ou 30, não lembro bem. Mas lembro que, ao meu lado, numa outra mesinha, havia um autor com muito mais público. A fila dele era uma sucuri que ondulava pela praça, e ele estava cercado por tantas pessoas, que eu não conseguia ver que escritor era. Foi só depois que a minha sessão de autógrafos se encerrou que identifiquei o homem: era o Sérgio Napp. Soquei a própria mão:

- Só podia!

Eu tinha uma tradição de perder para o Sérgio Napp. Havia, na época, o concurso Habitasul de Literatura. Devo ter me inscrito umas três ou quatro vezes nesse concurso e todas foram vencidas pelo Sérgio Napp. Muito irritante.

Depois, tive outras participações na Feira do Livro. Lancei mais de 20 títulos lá. Numa época, escrevia uma página inteira no caderno que a Zero Hora publicava durante as edições da Feira. Nesse caderno, escrevi um folhetim no qual abordava um dos maiores tormentos dos editores: os poetas.

As pessoas escrevem poesias, as reúnem e procuram os editores para que eles publiquem seus livros. É um drama, porque muitas vezes esses poetas amadores são amigos ou conhecidos dos editores. É difícil dizer não a eles.

No meu folhetim, o protagonista era um editor que vivia sendo acossado por uma senhora autora de poemas. Ela estava sempre cercando-o com seu livro e ele estava sempre tentando fugir dela. Até que, uma noite, ela o encurralou na barraquinha da editora na Praça da Alfândega, depois do fechamento da Feira naquele dia. Aborreceu-o tanto com aquele livro de poesias, que o editor a matou a golpes de dicionário Aurélio na cabeça.

O folhetim seguia por aí. Ele tinha de esconder o corpo e tudo mais. Nem lembro exatamente qual foi o desfecho, para falar a verdade.

Outra função que exerci na Feira do Livro foi como funcionário da livraria e editora Sulina, no começo dos anos 1980. Vi, numa daquelas feiras, o poeta Mario Quintana embevecido pela beleza de Bruna Lombardi. Ele a seguia pela feira como se estivesse hipnotizado. E, olha, entendo o Quintana: quando deparei com a Bruna Lombardi frente a frente, prendi a respiração. Ela foi um dos seres humanos mais belos que já vi. Linda, luminosa, meiga, algo fora do normal.

Em outra Feira, eu, o Sérgio Lüdtke e o dono da Sulina, o Leopoldo Boeck, saímos da praça e fomos caminhando até o Tuim, na Rua da Ladeira, a fim de tomar uns chopinhos e relaxar um pouco. Nos encostamos no balcão e pedimos três chopes e três bolinhos de bacalhau, logo servidos pelo tradicional garçom Camacho. O Camacho tinha um truque que sempre repetia: ao servir cachaça, ele erguia a garrafa bem alto, a metro e meio do copinho de bordas estreitas, e não derramava uma única gota na mesa.

Naquele tempo, mulheres não entravam no Tuim. Não que fossem proibidas, mas aquele era um bar tipicamente masculino. Numa de suas paredes havia um cartaz avisando: "Não vendemos bebidas sem álcool. Não insista". Noutra, o cartaz assegurava: "É permitido fumar".

Então, nós estávamos com os cotovelos fincados no balcão quando uma funcionária da Sulina, a Edna, entrou meio esbaforida, querendo falar com o Leopoldo. Todos os homens do bar pararam com suas conversas e ficaram olhando para ela. Uma mulher no Tuim! Que novidade! O velho garçom Camacho, ao vê-la, veio de uma das pontas do balcão, se debruçou gentilmente na direção dela e perguntou, todo formal:

- Aceitas uma groselha?

Algumas coisas só acontecem na Feira do Livro.

DAVID COIMBRA

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