sábado, 6 de novembro de 2021


06 DE NOVEMBRO DE 2021
MARCELO RECH

Coordenadas erradas

Aqui em Haia, na Holanda, há um bairro que guarda as cicatrizes de um dos maiores erros da Segunda Guerra Mundial. Dos bosques da cidade e arredores partiram cerca de mil dos 3 mil foguetes V-2 disparados pelos nazistas contra Londres. Na expectativa de destruir os lançadores móveis, a Royal Air Force, da Grã-Bretanha, planejou o bombardeio a um parque central onde se ocultavam as plataformas. Mas, por um equívoco brutal, os pilotos receberam as coordenadas erradas e 60 toneladas de bombas foram despejadas, em 3 de março de 1945, sobre o populoso bairro de Bezuidenhout, vizinho ao parque.

Com o bombardeio e os incêndios que se seguiram, 511 moradores morreram e mais de 3 mil prédios foram destruídos, entre eles cinco igrejas e nove escolas. Quando se deram conta do equívoco - a Holanda era vítima da ocupação nazista já havia cinco anos -, a RAF lançou panfletos pedindo desculpas à população. O que o desastre de Bezuidenhout ensina é que informações erradas, por melhores que sejam os objetivos, matam - o que é uma boa lição quando se perscruta a estratégia do Planalto para lidar com a pandemia do coronavírus.

É difícil acreditar ou provar que o presidente do Brasil procurou deliberadamente exterminar brasileiros. A hipótese é assustadora demais e, sem evidências definitivas, é improvável que Jair Bolsonaro venha um dia a ser julgado e condenado pelo Tribunal Penal de Haia, cuja corte, por sinal, fica a meros três quilômetros do bairro de Bezuidenhout.

Mas fica a cada dia mais cristalino que o presidente abraçou as coordenadas erradas para combater o coronavírus. Por mais tortuosa que seja, essa linha de ação partia da noção de que a melhor forma de vencer o vírus seria o contágio coletivo, sobretudo dos mais jovens, de forma a evitar um colapso social e da economia. Com sua visão peculiar de mundo, Bolsonaro aderiu à tese. Por isso, promoveu aglomerações, condenou as máscaras e o distanciamento, resistiu e ainda faz vista grossa à vacinação e espalha sandices há muito sepultadas ou ignoradas em outras paragens, como a defesa de medicamentos milagrosos ou o risco de aids em razão da imunização.

Na última semana, o Brasil contabilizou quase 22 milhões de contaminados pelo vírus, com 608 mil mortos, uma letalidade de 2,8%, segundo o Ministério da Saúde. Apenas para efeito de imaginação, suponha-se que a imunidade coletiva sem vacinação requeresse o contágio de ao menos 60% da população. O número de mortos chegaria a assombrosos 3,5 milhões de brasileiros, nada menos que 2,9 milhões a mais. Esse seria o desfecho macabro das coordenadas erradas acolhidas por Bolsonaro, de quem, felizmente, se retirou das mãos as alavancas que abriam os compartimentos de bombas.

MARCELO RECH

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