sábado, 6 de novembro de 2021


06 DE NOVEMBRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

APORIA

Poros, em grego, é caminho ou passagem. Antecedido por alfa privativo, torna-se aporia e significa impasse ou perplexidade. Em muitos de seus diálogos, Platão usou o argumento aporético, em que Sócrates leva seus interlocutores a concluírem que nada sabem, quando julgavam-se muito assertivos; para isso, segue um método de argumentação que demonstra que muitas questões não têm solução fácil, e algumas, nenhuma solução. Há algo trágico nesse termo, que já está em nossos dicionários e, muito pior, em nosso destino. E ambos, termo e destino, nos convidam a questionar: há saída? Como, quando e por onde?

Nietzsche teve que avançar com marteladas e memória trágica para desmontar o palácio de ilusões da razão otimista e fazer ressoar a verdade terrível que Sileno, mestre de Dioniso, lhe soprara: morre logo, não há solução. Os genes e o espírito de sobrevivência, todavia, falam alto, e, tal como a videira que reverdece e logo dará fruto, e deste o vinho, contamos com o fim do inverno e uma primavera em que renasça um mundo com muitas sendas possíveis. Eis o embate entre aporias e soluções, tragédia e amor à vida.

Há dois tipos de aporia: a subjetiva (ou individual) e a coletiva (ou social). Na primeira, um Hamlet em conta-gotas nos apresenta como dúvida as cirandas da prudência, entre pensamento e ação. Os poetas gregos, que com uso do mito entificavam a tudo, poderiam figurar uma deusa Aporia, como o fez o fabulista Esopo (620-564 a.C), na fábula do impasse de Héracles, que mostra como alguns problemas aumentam quando os atacamos. Claro que não pensavam na solução fácil dos coachs, "pense positivo e com foco no sucesso, desaparecem os problemas e ficas rico", mas atentaram para o fato de que a perplexidade também decorre da maneira de colocar-se diante dos desafios. Por vezes a aporia insufla a melancolia, um estado de enfrentamento e concentração, com alguma angústia, do qual pode resultar o voo criativo, a descoberta de soluções e um alívio com sabor de libertação. Há sempre a necessidade de formularmos a questão por diferentes ângulos, calcular, ponderar, argumentar em solilóquios ou em boas conversas, para divisarem-se saídas.

Muitos impasses, todavia, não os causamos, mas recebemos como quinhão de nossa vida histórica, em sociedade, como os que ora atormentam a brasileiras e brasileiros de bom senso: como sairemos dessa era obscura e superaremos tanta destruição? Como resgatar a parte perdida, iluminar trevas ora muito pronunciadas e lançar rumos de concórdia e desenvolvimento? Aporia, aqui, é tentar esclarecer a ignorantes que estão em tal condição deplorável justamente porque não querem ou não conseguem aprender. Ou, perplexidade ainda mais grave, como amansar agressores ora habituados ao ódio e à violência? Ora, se o avô de Hique Gomez conseguiu amestrar um lagarto (!), então poderemos um dia, quem sabe, educar a estúpida oligarquia brasileira, e com ela os demais monstros que ora impedem que aqui floresça uma sociedade em harmonia. E com harmonia há o oposto de aporia - muitos caminhos possíveis para todos.

FRANCISCO MARSHALL

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