sábado, 3 de setembro de 2022


03 DE SETEMBRO DE 2022
ELIANE MARQUES

A MORTEDA MORTE

Em O Mundo se Despedaça (1959), Chinua Achebe conta que Okonkuo, grande homem de Umuófia, atirou seu pai, o flautista Unoka, na Floresta Maligna. Abandonado para morrer ali, não teve túmulo. Unoka sofrera de inchação, abominável para a deusa terra, por isso se proibiu a ele o enterro em suas entranhas. Unoka "morreu e apodreceu por cima da terra e não lhe fizeram enterro, nem de primeira, nem de segunda", diz Achebe. 

Contudo, a rejeição da terra a Unoka deriva do fracasso dele em viver a vida que seu filho considerava boa - quase todos fracassamos nisso. É como se a Unoka fosse atribuído crime contra a mãe (terra). Mas era Okonkuo quem padecia do medo do fracasso que atribuía ao pai, era ele quem sofria do medo de ser descoberto na sua quase semelhança com o velho. Mais por isso do que pelo inchaço, o grande homem talvez tenha negado os ritos fúnebres ao pequeno. Ao não reconhecer nesse "pequeno" a condição de ancestral, Okonkuo mata o luto. E, anos depois, ele mesmo comete crime tido como "feminino" e vem a morrer com os pés distantes da terra.

Há frases para falar ou para silenciar a morte, para se fazer o luto e para consolar os enlutados e até o morto e a morte. No caso do flautista Unoka, tais frases foram banidas, enterradas no corpo de quem ficou. Não sendo possível o enterro do morto, enterraram-se, em seu lugar, as palavras do enlutamento. 

Tal cena se pode imediatamente associar ao padecimento do corpo amefricano advindo dos milhões de assassinados, aparentados a nós, no processo de escravização transatlântica cuja morte não se fez acompanhar de palavra, pranto ou túmulo. Sim, não é a mesma coisa; Unoka estava ainda sobre uma terra considerada sua. Mas quantos de nós, que transitamos entre os vários significantes "Negro", pensamos (sem pensar) que fomos rejeitados por nossa terra-mãe e, por isso, jogados à flor da terra estrangeira amaldiçoados como "pretos novos"?

"Aos 18 de julho de 1827, Joaquim Antônio Ferreira mandou sepultar um escravo novo, com a marca à margem no braço direito, vindo de Angola no navio Despique; do que fiz este assento (...)". Se compararmos os sequestrados de África com o quantum dos que morreram na travessia transatlântica, na chegada, antes de serem vendidos, ou depois, com os corpos jogados ao sal do mar ou atirados à flor da terra ou mesmo jamais enterrados, o trecho acima, citado de À Flor da Terra: Pretos Novos no Rio de Janeiro (Júlio Pereira), não enuncia a regra quanto ao sepultamento das gentes escravizadas, mas a exceção. 

Quem é que pranteava por essas vidas-mortas, quem se recordava de que tais corpos tinham um nome e uma história, quem falava deles? É o que pergunta Preta Susana, no romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. A colunista estará mais uma vez de mimimi ao convocar a leitora para mais do que "pensar", falar sobre isso?

Com a repressão da morte, se reprimiram também as coisas do amor. A recusa do enlutamento é uma recusa da morte e do amor. Por isso, é tempo de viver o luto por esses mortos ainda sem nome enterrados em nós.

ELIANE MARQUES

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