sábado, 23 de outubro de 2021


23 DE OUTUBRO DE 2021
LYA LUFT

A esperança

Literatura plena, sonho e realidade: nunca se diferenciam inteiramente. Numa das janelas de meu quarto florescia uma soberba magnólia branca. Em alguma coluna de décadas atrás, cantei sua beleza surpreendente, pois um dia abrindo as persianas, aqueles cálices de uma infinita elegância, uns já abertos, curvos, alvos nas beiradas e púrpura no interior. O perfume quase tonteava.

Meu dia estava iluminado, era minha flor predileta, e rara naqueles dias.

Lembro dela como símbolo de esperança nestes dias em que tanto me falam dela, porque de verdade como tantos doentes, tanto dela preciso.

Por delicadeza e inspiração, muitas telas de minha filha Susana apresentam essa flor. Por esquisitice, acho que nenhum livro meu a menciona. Mas estão aqui, minhas magnólias ilusoriamente alvas. Vistas de longe são arbustos imaculados, mas a gente sabe de seu interior púrpura.

Não é assim a esperança e a vida? Queremos que sejam alvas, alvíssimas, mas amamos seu simbolismo, mesmo com as nuances de rosa-clarinho escurecendo no coração da corola mágica até um púrpura quase negro.

Amamos a vida mesmo na incerteza e na dor, como amamos essa flor estranha, inesperada, cujo nome eu sonhava ter, o que minha família achava ridículo.

E não é que um dia eu viria a conhecer duas irmãs "magnólia" e "margarida" e as invejei profundamente?

Então, magnólias, olhem por mim, me deem o dom de não só acreditar, mas confiar e conseguir luz, não sombra, e esse amor pela vida, o voo das nuvens, o anúncio dos sabiás varando a madrugada, e o carinho de amigas, família, leitores, e das lindas alegres netas que logo chegam para almoçar.

LYA LUFT

23 DE OUTUBRO DE 2021
MÚSICA

ELAS DÃO SHOW NO NATIVISMO

Com 11 atrações divididas em dois dias de shows em Esteio, o projeto "Galpão das Patroas" valoriza a presença feminina no tradicionalismo

É com indumentária de prenda que se dá um passo bem dado rumo à igualdade de gênero na sociedade gaúcha. Neste fim de semana, o CTG Independência Gaúcha, em Esteio, sedia o projeto cultural Galpão das Patroas, festival com 11 atrações femininas da música tradicionalista. Com público reduzido e transmissão simultânea nas redes sociais, nomes como Shana Müller, Analise Severo, o duo Gurias Gaúchas e os grupos As Maragatas e The Allpargatas vão colocar todo mundo pra dançar - respeitando, é claro, as regras de distanciamento impostas pela pandemia. As apresentações serão neste sábado, a partir das 18h, e no domingo, a partir das 14h.

A iniciativa, viabilizada por financiamento do Pró-Cultura RS, do governo do Estado, terá repertório dos mais diferentes períodos da música nativista, recuperando canções de cantores consagrados e da nova geração. Com produção de Cássio Scherer, o festival mostra que a luta por uma sociedade mais igualitária depende de homens e mulheres trabalhando juntos.

- Muita gente confunde o propósito do movimento feminista, por exemplo, acreditando que ele busca uma rivalidade entre homens e mulheres. Não. Nenhum movimento em prol do feminino vai dar certo sem a parceria com eles. Essa iniciativa é uma prova: um homem, colega músico e produtor que lançou um olhar sobre essa oportunidade de reunir apenas mulheres num evento. Esse é o caminho - celebra Shana Müller, que comanda o Galpão Crioulo ao lado de Neto Fagundes.

União

As outras participantes do evento também validam a ação como oportunidade de reafirmar o papel da mulher na sociedade. Anelise Severo, que sobe ao palco no domingo, lançou em 2019 o projeto Bem Gaúcha, com canções voltadas ao empoderamento feminino. Em uma das faixas, Só Podia Ser Mulher, Anelise lembra que o bote salva-vidas, o GPS e o painel solar foram idealizados por mulheres.

Marianita Ortaça, outra atração do domingo, vai além em sua expectativa para o Galpão das Patroas. Filha do nativista Pedro Ortaça, a cantora vê o evento como símbolo de "novos tempos" para a mulherada, com um gosto especial: esta será a sua primeira apresentação sem dividir o palco com a família de artistas nativistas.

- Meu pai estará presente a todo momento, com suas canções, com o seu sangue missioneiro e gaúcho, que corre nas minhas veias, com sua essência simples e profunda que tanto me inspira e ilumina nessa caminhada de honrar seu canto e daqueles que fizeram tanto pela música missioneira. Esse momento representa um jardim florescendo para um movimento de união das mulheres pela música - declara Marianita.

Nos bastidores, o clima é de união. Para Shana, a generosidade em meio aos corredores de festivais nativistas entre as mulheres é o que possibilita dar abertura para quem está iniciando sua caminhada. Anelise, por sua vez, destaca o quanto a troca com outras artistas do meio lhe ajudou a alçar voos ainda mais altos. Para Marianita, que abriu sua marca de roupas em paralelo com a carreira musical, tudo o que faz acaba se encontrando no palco graças a essa força de amor e união, principalmente das mulheres.

Como diria a saudosa Berenice Azambuja em uma de suas canções mais marcantes, "quem tá mandando é a mulherada".

 GALPÃO DAS PATROAS

CTG Independência Gaúcha (Rua Avelino Antônio Zonta, 649), em Esteio. Sábado, às 18h: Fofa Nobre, Tatiéli Bueno, Gurias Gaúchas, Shana Müller e Fátima Gimenez. Domingo, às 14h: Luiza Barbosa, Analise Severo, As Maragatas, Marianita Ortaça, Juliana Spanevello e The AllPargatas. Ingressos: 1 kg de alimento não perecível. Entrada por ordem de chegada. Lotação: 300 espectadores por dia. Transmissão ao vivo pelos canais do Galpão das Patroas no Facebook e no YouTube.

 JÚLIO BOLL


23 DE OUTUBRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Em que mundo tu vive?

Conheci José Falero através de seu livro Os Supridores. Até então, nada sabia dele. Devorei o romance. Não era a primeira vez que lia uma história passada na periferia, mas dessa vez me senti levada pela mão até o miolo da vila, o epicentro da pobreza, o cenário real onde uma população de homens e mulheres trabalha em troca de uma miséria, sem perspectiva de futuro. Criminalidade? Temos, mas não apresentada como defeito de caráter, e sim como consequência de um estado de coisas, que ele descreve com originalidade, humor e algumas vísceras. 

Logo no início, ali pela página 50, uma conversa entre os personagens Pedro e Marques funciona como uma aula sobre os diferentes sistemas socioeconômicos, narrada de um jeito que uma criança de sete anos consegue entender. Humm, livro chato, então. Poderia ser, não fosse diabolicamente empolgante, inteligente e bem escrito, levando-se em conta que não existe apenas um modo de escrever e de falar.

Isso foi em março de 2021. De lá pra cá, li outros tantos livros e dei trato à vida. Pois Falero reaparece agora com uma coletânea de crônicas publicadas na revista digital Parêntese. Título: Mas em Que Mundo Tu Vive? Abri com o mesmo ânimo com que fechei Os Supridores. E veio a bofetada.

Logo percebi que não seria tão palatável. Se antes eu havia sido gentilmente conduzida pela mão até as entranhas do inferno, agora eu estava sendo empurrada pelas costas, sem ver direito para onde ia, quase um sequestro. Mas os livros deixam sempre a porta destrancada; se eu quisesse sair, saía. Não saí. Passei dois dias inteiros com Falero, sua família e seus amigos na Lomba do Pinheiro, apanhando sem tentar fugir. Agora não era mais a ficção de Pedro e Marques, e sim a voz do próprio autor, sua história, suas broncas, sua angústia. Revolta que só mesmo a literatura reverbera - e também a música, o cinema, a arte. Não é no Instagram que a vida real ganha forma e cor.

Condescendência - taí uma palavra que não faz parte do vocabulário de Falero. Ele coloca o dedo em todas as feridas e remexe até sangrar, ele expõe sem rodeios a dor de ser pobre e preto numa sociedade indiferente, descreve o que é se sentir um rato e o tamanho da desesperança. Se Falero pudesse dizer alguma coisa pra mim, agora, seria "valeu, Martha, mas o que você está escrevendo aí não vai servir pra nada". Eu sei.

Você não quer confete, Falero, e sim quebrar o ciclo das injustiças sociais, que é o que todos deveriam querer também. Mas permita que eu use a minha página, hoje, para atrair os que têm coragem de levar uma bofetada, duas, três, até acordarem do transe da conformidade. E avisá-los que você bate, sim, mas também consegue ser lírico e muito emocionante. Sei lá, vá que sirva para alguma coisa.

MARTHA MEDEIROS

23 DE OUTUBRO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Quando o mundo entra em casa

Alguém toca corneta aqui perto de casa em todos os finais de tarde.

Deve ser em algum sinal das redondezas, uma variação dos malabares, dos meninos prateados e dos cartazes onde uma palavra, FOME, se destaca em um papelão. Os acordes começam junto com a minha irritação.

O repertório do corneteiro é o mais improvável possível. Indiferente aos bem-vindos códigos dos novos tempos, ele em geral inicia sua apresentação com Olha a Cabeleira do Zezé. Até os bailes de carnaval já baniram Olha a Cabeleira do Zezé, mas o corneteiro não está nem aí para a incorreção.

É aí que a minha irritação começa a passar.

Pelo titubear das notas, se é que notas titubeiam, é uma pessoa que não sabe tocar, ou não o bastante para se exibir em público. Talvez tenha aprendido lá na infância, talvez ainda seja uma criança, ou quase isso. Não sei sequer se é homem ou mulher. Chamo de corneteiro por facilidade ou preguiça.

Depois de Olha a Cabeleira do Zezé executada em looping, o corneteiro segue ignorando o bom-tom - em todos os sentidos - e ataca de Mulata Bossa Nova. O repertório dele remonta a conceitos passados. Certo que ele não pegava naquela corneta há muito tempo e precisou se valer dela para tentar arrumar uns trocados no sinal.

Nesse ponto, minha irritação foi embora de vez.

Ele é tão ruinzinho que lembra um anúncio premiado do Exército da Salvação, de uma época em que a propaganda produzia ideias que não eram esquecidas em trinta segundos. Ou dá ou nóis toca, dizia o anúncio, homens de uniforme amarfanhado com sax e corneta fotografados de um jeito que pareciam armas. Ou dá ou ele toca, eu penso, enquanto o corneteiro segue assassinando a Mulata Bossa Nova.

Na TV, pessoas disputam restos de comida dentro de um caminhão de lixo em Fortaleza.

Gente que perdeu pai, mãe, companheiro, companheira, às vezes metade da família, desfila no pior dia da CPI da Covid.

Bem nessa hora, o corneteiro ataca de Maria Sapatão. E não é que a inadequação e a inconveniência de mais alguém tentando sobreviver deixa tudo mais triste ainda?

Agora já é noite e ele continua tocando. O corneteiro sempre deixa o mesmo número para o gran finale, Careless Whisper, uma das mais clássicas do George Michael. Quando castiga no tã-rã-rã-rã-tã-rã-rã-rã que introduz a música, já sei que logo ele vai levantar acampamento. Com um pouco de sorte, levando algum troco no chapéu.

Amanhã tem mais.

A beleza também sobrevive. O 28º Porto Alegre Em Cena vai até dia 31 de outubro com uma programação que só uma curadoria muito valente e competente (oi, Fernando Zugno) poderia trazer nesses tempos difíceis. Com todas as atrações gratuitas, dividido em digital e presencial, o Em Cena vai juntar artes cênicas e visuais de presente para o público. Já viu a mostra Jardim Guarani, de Xadalu Tupã Jekupé, no Foyer do Theatro São Pedro? E as cobras infláveis de Jaider Esbell no Espelho d?Água da Redenção? É preciso retirar senha para as atrações presenciais - entre elas Altamira 2042, Metaverse e Fantasmagoria nº 2. O palco aqui é pequeno para uma programação tão rica - que está toda aqui: portoalegreemcena.com.

Clap clap, clap, clap

CLAUDIA TAJES

23 DE OUTUBRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

O SILÊNCIO NA PANDEMIA

O pior som de uma pandemia é o que, em música, chamamos de pausa: o silêncio. Há algo ensurdecedor no que vivemos: vozes de mais de 600 mil pessoas que deixaram de falar. A morte é a coisa mais gritante e inaudível em perversa combinação. Ao contrário dos carros que emitem pequenos ruídos estranhos quando estão com algum problema, nossas mazelas físicas raramente provocam ruído. O vírus que avança, o tumor que se instala, a artéria que se entope de vez são, usualmente, um gato andando sobre um tapete grosso: nada se ouve.

Além do silêncio enorme causado pela pandemia, há o apagar de vozes importantes na arte. Músicos ficaram sem emprego, orquestras fecharam, deixamos de produzir shows e a pausa malévola dos palcos atingiu camarins, coxias, luzes e figurinos. Conviveremos muito tempo com os efeitos colaterais da pandemia na área cultural. Decidimos reabrir bares e restaurantes, depois escolas e, por fim, teatros e casas de espetáculo. O risco de contaminação é grande em todos; a ordem mostra algo do nosso mundo e dos valores que praticamos.

Talvez as crises históricas (guerras, revoluções, desastres naturais e epidemias) tenham sempre um efeito duplo. Por um lado, aceleram o que já estava posto. A peste bubônica do século 14 desestruturou o já claudicante feudalismo. A Primeira Guerra Mundial (1914-18) fez ruir impérios decadentes e multinacionais como o turco-otomano ou o austro-húngaro. Porém, além de acelerar o que já era notado, os processos citados costumam revelar o que se tentava disfarçar ou se convivia sem alarde. As crises revelam muito o caráter dos seus atores e atrizes.

A pandemia desnudou muitas pessoas. Acompanhei gente que descobriu, enfim, o peso do desamparo da pobreza no Brasil. Alguns amigos se tornaram voluntários. O epítome da doação que brilhou ainda mais no caos sanitário e social que vivemos foi o padre Júlio Lancellotti. Sim, há quem o considere equivocado. Existem detratores da sua ação. Acusam a publicidade constante que ele intensificou com fotos em redes sociais. Um "agente do comunismo internacional", aquele risco extraordinário que habita o fundo do último buraco da consciência de alguns reacionários. O comunismo no Brasil é como a neve no nosso país: sim, pode ocorrer aqui e ali de forma bissexta, acumula pouco sobre o solo, derrete ao sol e produz bonecos muito pífios com turistas encantados. Nosso comunismo é como a neve em Gramado, deleite de Instagram mais do que efervescência revolucionária.

Imagino que, estando com fome na rua, uma pessoa não olha para o padre Júlio e pensa: nossa, este cara está tentando me cooptar para um projeto político esquerdista baseado na sociologia de Marx e Engels. Acho que, quase todos, devem ficar agradecidos. A cena do padre Júlio batendo com marreta pedaços concretados de engenharia de sanitarismo social canhestro é uma das mais marcantes. Discorda? Sem problema: qual a sua prática cotidiana a favor de pessoas em situação de rua? Se você faz algo distinto e eficaz sobre a questão, então, tem condições de se posicionar de forma diferente. Para sair da rua, precisamos de esperança.

LEANDRO KARNAL

23 DE OUTUBRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

VILLA-LOBOS E OS CHACAIS

Heitor Villa-Lobos (1887-1959) sonhou com um Brasil belo e o pesquisou no folclore, para edificá-lo com arte, modernidade, devoção pública e muita energia; compôs maravilhas, assumiu compromissos e desafios e assim transformou nosso país para muito melhor. Já os chacais, embora pertençam, com cães, coiotes e raposas, à mesma família dos lobos, Canidae, são de outra espécie, predadores oportunistas agressivos, o que lhe rendeu título de filme, O Chacal (1997), baseado no romance O Dia do Chacal (1971), de Frederick Forsyth, leitura predileta de terroristas como o venezuelano Carlos, o Chacal, que ora cumpre prisão perpétua na França. A metáfora aqui discerne o nome que edifica, Villa-Lobos, do que pode destruir, o chacal, e denuncia tramas sórdidas bem atuais.

Entre os feitos notáveis de Villa-Lobos, conta-se o esforço para difundir a cultura musical na Era Vargas (1930-1945), quando ocupou, a partir de 1932, o cargo de Diretor da Superintendência de Educação Musical e Artística (Sema), criada por ele e pelo educador Anísio Teixeira (1900-1971), que morreu assassinado por chacais no poder, na ditadura militar. Com Villa-Lobos, o Canto Orfeônico consagrou-se como política pública e, em toda a nação, coros e sociedades musicais deram novo alento ao nome do herói grego, Orfeu, aquele que com o assombro da música superou fronteiras da vida e da morte.

Em Porto Alegre, Villa-Lobos inaugurou no Instituto de Educação Flores da Cunha sua sala de canto orfeônico, em cuja porta há ou havia placa alusiva; ali esplendeu o Orfeão Artístico Araújo Viana, parte da vida cultural do educandário onde se formaram gerações excelentes de educadoras deste Estado. O prédio neoclássico deste instituto, projeto do arquiteto Fernando Corona (1895-1979) inaugurado em 1937, encontra-se em reforma ora estagnada pela incúria dos modernos chacais, os administradores incompetentes; neste caso, os predadores chegam a cogitar outra finalidade para este monumento da educação gaúcha; ignorantes no poder são piores do que chacais cercando a aldeia.

Na Lomba do Pinheiro funciona, desde 1959, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos, e nela, desde 1995, a Orquestra Villa-Lobos, responsável pela formação musical e pela promoção social de gerações de músicos, com destaque para o flautista e educador Vladimir Rodrigues Soares, um dos maiores doce-flautistas da atualidade, ora radicado na Alemanha. Pois essa orquestra ora sofre com a incúria da prefeitura, que a deixa desamparada e ameaçada. Não surpreende que os mesmos chacais ora tratem da eliminação da mais nobre disciplina, a Filosofia, do currículo escolar das escolas municipais de Porto Alegre, para porem em seu lugar, pagas com dinheiro público, aulas de catequização. O pobre canídeo é doce criatura, perto dos estragos que chacais humanos e desumanos ora promovem, com mentes torpes e oportunistas.

Ouve-se uma Bachiana Brasileira e se acende o amor e a esperança. Valham-nos Villa-Lobos e todos os dons da arte e da educação, sempre, e ora lutemos por eles.

FRANCISCO MARSHALL

23 DE OUTUBRO DE 2021
COM A PALAVRA

TODOS ESTAMOS CARENTES. TUDO É O MÍNIMO PARA COMPENSAR AS PRIVAÇÕES DA PANDEMIA

FABRÍCIO CARPINEJAR

escritor, 49 anos Poeta, cronista, ensaísta e jornalista com quase 50 livros lançados, é o patrono da 67ª Feira do Livro de Porto Alegre, que começa na sexta-feira

Fabrício Carpinejar não para. Tanto é que, em 23 anos como escritor, já publicou 48 livros - mais de dois por ano. E, para não perder o ritmo, terá um mês de outubro movimentado: além de completar 49 anos neste sábado, ele ainda está lançando Depois É Nunca (Bertrand Brasil, 128 páginas, R$ 40, em média). E marcará presença na Praça da Alfândega, a partir de sexta-feira, como patrono da 67ª Feira do Livro de Porto Alegre, título que vem para o autor apenas três anos depois de pertencer a sua mãe, a poeta Maria Carpi. O escritor teve uma jornada cheia de percalços, sofrendo um grave problema de saúde na infância, recebendo convite para sair da escola porque não conseguiria aprender a ler e a escrever e sendo vítima de bullying. Hoje, celebra a vida e diz que, após ter visitado o fundo do poço, descobriu o caminho para sair dele e apresenta o trajeto aos outros que passam pela mesma situação. Esse, segundo ele, é seu legado.

COMO VOCÊ ENXERGA O ATO DE LER UM LIVRO?

A leitura abre espaço para a solidão, para o silêncio. Ler é fortalecer a solidão, é desenvolver a capacidade de ouvir melhor depois, porque você pratica a concentração. Ler é refinar a atenção. No ato da leitura, você tem muito mais controle sobre aquilo que está sentindo. Ler tem a mesma frequência da yoga, da meditação. É aquele tempo e aquele espaço para si. E é importantíssimo, porque você vai fortalecendo a sua fantasia para o bem, não para o mal. Ao ler, você não espera o pior, você trabalha para resolver dilemas das narrativas, do conteúdo apresentado.

Por que o silêncio é importante?

O silêncio é gostar de sua própria companhia. O silêncio não é vazio, mas é visto com preconceito, como se fosse falta do que dizer. O silêncio talvez seja "eu não preciso dizer, já que o momento é tão bom". O silêncio está mais próximo da completude do que a voz. Sou muito comunicativo, mas tenho vários momentos de silêncio. E não me canso dele. O silêncio é afinação.

Com mais de 600 mil mortos pela pandemia no Brasil, qual é o significado de lançar o livro Depois é Nunca, que aborda o luto?

A morte pela covid-19 é crua, imperfeita, precária, se dá no contratempo de uma epidemia. É uma morte sem solenidade, sem velamento. É indecorosa, aflita, ofegante, escandalosa, omissa, criminosa. Você não tem o direito de chorar pelo morto, de prestar uma homenagem, de oferecer gratidão. Os mortos só serão enterrados de fato depois da pandemia. São lutos interrompidos, inacabados, malogrados. Você perdeu um ente querido e teve que fazer a despedida às pressas, sem cerimônia, sem entender como aconteceu. De repente, você tem uma ausência. Daí surgiu o livro. É como se eu tivesse oferecendo um enterro digno, decente, pelas palavras.

Sendo um observador da vida, das pessoas, dos sentimentos, como você vê a transformação do país nestes 18 meses?

Não existe transformação, mas, sim, um recuo, um medo. Existe desespero social, atrofiamento do mercado de trabalho, inflação, recessão. Ninguém se sente seguro culturalmente no país. Ninguém se sente seguro para escrever, para fazer um filme, para pintar uma tela, para montar uma peça de teatro. É um país em demolição, em ruínas. É um país em que museus queimam, florestas queimam, arquivos queimam. O fogo tem mais espaço neste país do que o intelectual.

Você fala muito sobre a importância do abraço, do afeto. Como imagina que a diminuição da troca de carinho vem afetando as pessoas?

As pessoas estão absolutamente carentes. Elas se desacostumaram com o abraço, as confissões, partilhar as suas dúvidas, confiar no outro. Será uma reaprendizagem coletiva. Todo mundo está à flor da pele sem ter onde florescer. O espaço reduzido, com seus sonhos encolhidos, todo mundo que tinha uma viagem programada, um casamento para fazer, um negócio, foi obrigado a recuar. Agora, o que você espera? Tudo! Espera por reciprocidade, adesão, simpatia, colo, cafuné. Tudo é o mínimo para compensar tantas privações desse período. Não dá mais para ficar de cara amarrada, rabugento.

E esse processo vai ser simples?

Não. Vai precisar de paciência, de tempo. Não tem como ter um encontro fortuito, um encontro rápido, breve. As pessoas estarão querendo desabafar, que o seu sofrimento seja reconhecido. Acabou a disputa de quem sofreu mais. Não dá para fazer isso. Não dá para fazer uma gincana do sofrimento. Temos que procurar outra perspectiva, outra gincana: quem pode ajudar mais?

Todo mundo sofreu de alguma maneira na pandemia. Como deixar a dor de lado para entender o outro?

Só tem um único jeito: celebrando a presença, agradecendo. A gratidão de estar presente ali. Não em outro lugar, mas ali. É entender a importância do encontro. É não ficar pela metade. É não mais estar onde o afeto não domina. É ser fiel ao agora. Ser leal ao agora. É o único jeito. Agradecer ao fato de termos novamente uma Feira do Livro presencial. É ter a noção do que significa essa retomada, não procurar anormalidades. Respeitar a grandeza da resiliência. Não tem mais como adiar, não tem mais como dizer "depois nos vemos" ou "vamos marcar um café". Não! Quer tomar um café? Toma agora. Não existe mais o gerúndio, ele morreu.

Hoje em dia, muitas vezes, a sensibilidade é tida como fraqueza, atacada com deboche. Como você vê isso?

Há um culto à aparência, ao orgulho. O orgulho é prejudicial ao amor. Ele não admite nunca que está errado. Quem não chora vai acabar chorando no meio do riso, vai inverter seus sentimentos. Vai viver pelo avesso. Vai rir de nervoso, vai amar odiando. A honestidade é vulnerabilidade. Quando mais vulnerável você for, mais será autêntico, porque você estará aceitando a sua imperfeição. Não vai mentir. Quem mente é quem não quer se emocionar. Começa a mentir sobre o que está sentindo, e as mentiras se alastram para outros setores da vida, porque a pessoa está disfarçando sua própria natureza, enganando a si mesmo. Falo o que sinto pontualmente, e isso me tira o peso do ressentimento, das mágoas, as âncoras da culpa. Assumo quem sou, com meus defeitos e minhas virtudes. Se você não se abre para a vulnerabilidade, nunca vai encontrar pontos de conexão com o outro. Nunca vai ter empatia.

como você aprendeu isso?

Minha mãe tinha o hábito de costurar minha roupa enquanto eu a vestia. Eu tentava tirar a camisa, que havia perdido um botão, e ela dizia: "Não, fique aí". E, naquele momento em que ela costurava, eu aprendi a ficar quieto. Mas minha mãe não fechou meu corpo, ela o abriu ao afeto. Quando ela costurava, em seu banquinho de madeira à minha frente, dizia: "Abre-se para o afeto. Aprenda a ficar próximo do outro. Fique rente". Ela encurtava as distâncias com esse gesto. E, talvez, o abraço seja uma costura. A gente nem repara em como os gestos são simbólicos, quanto a gente precisa se emocionar para lembrar. A emoção que torna cada fase inesquecível. Se não tem emoção, esquecemos.

Escolhido patrono da Feira do Livro e lançando novo livro. o que não vai faltar é emoção nos próximos dias...

Ser o patrono da Feira é a maior consagração literária que existe no Estado, o maior prêmio que eu recebi em vida. Porque é uma representatividade, não é um troféu por um livro. É um prêmio por um conjunto entre pessoa e obra. E eu não vejo sentimentos vedados. Na Praça, estará o Fabrício com todos os seus sentimentos. Se eu tiver que chorar, vou chorar. Se tiver que rir, vou rir. Se eu tiver que falar sério, vou falar sério. Se tiver que fazer piada, vou fazer piada. Todas as estações estarão embaralhadas na minha personalidade. Mas o que posso garantir é que estarei de alma na Feira. Roupa de domingo em todos os dias. O patrono é uma alma coletiva. Eu diria que estou vivendo a exuberância do arrebatamento. Tanto com o Depois É Nunca quanto com o patronato, me sinto útil. Sei que tenho algo a dizer.

E a responsabilidade de ser escolhido para o posto de patrono três anos depois de sua mãe?

Talvez eu seja patrono porque tive um cabo eleitoral forte (risos). E que cabo eleitoral! Esse ninguém nunca teve. Com mãe e pai autores, sempre tive a consciência de que eu era o terceiro melhor escritor dentro de casa (risos). Não era nem no bairro, nem na cidade, eu já saía perdendo dentro de casa. Tenho maior orgulho dos meus pais e de tudo o que eles já escreveram. Sou leitor deles. Quando você tem pais escritores, pode pensar: "Ah, já sei tudo o que eles falam". Não é. Leio sempre com surpresa, com arrebatamento. Sempre vendo o quanto eu ainda não conheço os meus pais. O amor depende da curiosidade. Quando falamos "eu te conheço de cor", você está, sem querer, assassinando o amor. Porque amor é "eu te desconheço a cada dia".

Como foi a conversa com a sua mãe após o anúncio de que você é o patrono?

Pela primeira vez, vi minha mãe conseguindo guardar segredo. Ela já devia saber antes... Porque mãe costuma dar pistas, aquelas pistas genéricas diretas como "vai acontecer algo de bom na tua vida". Mas não. Minha mãe conversava comigo como se não fosse acontecer nada. E ela ficou eufórica, chorou. Imagino o que passou pelo coração dela, que foi aquela pessoa que confiou em mim, apesar de todas as adversidades e as advertências de que eu não aprenderia a ler e a escrever. Ela deve ter tido um flashback violento, pensando "eu estava certa, eu fiz o certo".

Nesta época de efemeridades, em que as pessoas fazem sucesso hoje e caem no esquecimento amanhã, como você se mantém relevante?

O tempo interior é diferente do tempo físico. Você deve se preocupar é com o tempo interior. As alegrias são efêmeras se você depende de alguém para concretizá-las. Falo que é a ciência do restricionismo, que atinge todos os lares. Ou você é vítima ou você a pratica. Você vai contar uma novidade, feliz, e a pessoa coloca um porém, uma restrição. Você não consegue comemorar seus feitos com quem mais ama. E você fica sempre com a festa frustrada, pois colocou todas as suas expectativas no reconhecimento alheio. O que recomendo para combater a efemeridade das alegrias é: comemore por sua conta. Não meça sua alegria pelo aplauso do outro.

É isso, então, que te mantém cativante?

Sim. Eu comemoro um cálice de vinho, um bom livro, cada pequena delicadeza da vida. Somos terrivelmente influenciáveis, porque somos carentes de reconhecimento. E isso faz com que sabotemos nossas conquistas. Não existe consenso. Não existe autenticidade em um consenso, ele é uma idealização. O que eu não posso é me cancelar. Você não pode se cancelar. Da mesma forma que o público está vaiando, dependendo do que você faça, em seguida ele estará aplaudindo. Não entendemos toda essa metamorfose em que estamos envolvidos. Somos fases, períodos. Você acha que a sua vida acabou? Não acabou. Acabou um ciclo que vai permitir a reinvenção mais adiante.

VOCÊ COMEÇOU A CARREIRA COMO POETA, PUBLICOU LIVROS QUE FORAM BEM RECEBIDOS E, EM CERTO MOMENTO, DESCOBRIU A CRÔNICA, GANHANDO MAIS POPULARIDADE. COMO VOCÊ VÊ SUA RELAÇÃO COM A POESIA? ELA ESTÁ NAS SUAS CRÔNICAS?

A crônica é uma conversa. A poesia é um monólogo. A crônica tem as hesitações, as incertezas, as dúvidas, como se você estivesse conversando com alguém. A poesia é uma conversa consigo mesmo. A poesia é a minha densidade. A crônica é a minha extroversão. As duas se comunicam, mas são personalidades diferentes. Na poesia, eu descubro o que nem sei. Na crônica, reparto o que sei. A crônica eleva as banalidades, é o sublime do simples. A poesia é o essencial, é o osso, é o que ficou, é a herança. São Fabrícios diferentes. Agora, conversando contigo, não sei se estou sendo poeta ou cronista, não sei quem assumiu o comando (risos).

SOMANDO SUAS REDES SOCIAIS, VOCÊ TEM MAIS DE 3 MILHÕES DE SEGUIDORES, QUE INTERAGEM, TRAZEM PROBLEMAS, SE ABREM. COMO É ESSA TROCA?

Há cumplicidade. Não há um moralismo, não me coloco em uma posição superior para dar conselhos. Estou no mesmo patamar, no mesmo degrau. Cito tudo o que aconteceu na minha vida, de extravio, de tombo, de queda. E isso vai criando uma familiaridade. Falo que são aqueles palpites de amigo. Não sou terapeuta, nem psicanalista, nem psiquiatra. Sou um amigo das palavras. Posso ouvir bem. Ao desabafar, você já está organizando o que está sentindo. O desabafo é o princípio da cura.

DESDE 1998, VOCÊ SOMA 48 LIVROS PUBLICADOS. É UM NÚMERO QUE MOSTRA UM RITMO DE PRODUÇÃO INTENSO. COMO CONSEGUE ESCREVER TANTO?

Passei toda a minha infância e parte da minha adolescência quieto. Eu só destravei (risos). Eu tinha uma caixa d?água de fantasias, de histórias, de causos. E minha mãe costuma dizer: "Eu alfabetizei o Fabrício com poesia, e deu no que deu". É que tem grande parte da minha produção que é desconhecida, que é a produção infantojuvenil. Os livros infantis não recebem críticas, não têm o mesmo reconhecimento dos de adulto. Torna-se muito mais possível publicar dois livros por ano sendo um infantil e um adulto.

você Pretende diminuir o ritmo agora que está chegando aos 50?

Faço 49 anos neste sábado, e nem no meu aniversário posso reinar sozinho, porque divido a data com o Pelé (risos). Mas, para diminuir o ritmo de produção, é só não me confinar em casa por dois anos de novo. Vou estar gastando parte do tempo viajando, namorando. Não me tranquem mais em casa, por favor!

HÁ UM CANSAÇO GENERALIZADO.

Sim! Duvido que quem ficou trancado em casa nesses dois anos não ficou com vontade de trocar o sofá, o colchão, a mesa. Você enjoa de tudo o que tem.

TEVE GENTE QUE TROCOU DE COMPANHEIRO, DE COMPANHEIRA...

Aqui isso não aconteceu (risos). Longe disso. Cada vez, eu fico mais apaixonado pela Beatriz. Isso é intocável. Até porque a Beatriz muda todos os dias. Ela é sempre outra pessoa. Mas a casa envelheceu o dobro nesse tempo para todo mundo. Minha sensação é de que moro no mesmo apartamento há um século.

VOCÊ REALIZA OFICINAS QUE PROMETEM CURAR PESSOAS A PARTIR DA ESCRITA. COMO?

Todo mundo deve, diariamente, escrever à mão. Sua memória se fortalece quando você escreve à mão, tudo vira um conhecimento mais portátil. Escrever à mão funciona como uma espécie de catarse. Você se previne da precipitação, da pressa ou do arrependimento por algo que disse. A escrita curativa não é para escritores. A gente precisa terminar com esse elitismo. Todo mundo deveria escrever, sem exceção. Triste do longo casamento em que as duas pessoas não conhecem a letra um do outro. Quando você escreve, tem um tempo, um espaço para si. Uma espécie de esconderijo, fortaleza.

Escrever torna as pessoas melhores?

Muito! E vão se livrar de enrascadas, de encrencas, de dedo podre, de padrão repetitivo, da obsessão, vai atracar a ansiedade. Porque você tem que escrever, não importando como. Não corrija aquilo que você está escrevendo. Escreva como higiene mental, como higiene interior. Você vai qualificar seus diálogos. Você também não vai ser tão carente. Como você se escuta, se conhece mais, confia mais em si e não será tão dependente dos demais.

você escreve frases em guardanapos, e elas fazem muito sucesso entre os seus seguidores. Por que escolheu esse objeto tão simples e que tem o objetivo final de ir para o lixo como ferramenta?

Escolhi o guardanapo porque eu sempre me senti um. Sempre fui ridicularizado por ser feio, por não ser simétrico, fotogênico, ter dificuldade de aprendizado. Eu me sentia um guardanapo diante do bullying. O guardanapo é aquilo que será descartado, posto fora. É aquilo que você usa, amassa e joga no lixo. Aquilo que tem uma serventia passageira. Ao escrever meus aforismos no guardanapo, estou também me salvando. Porque, depois que tem uma frase no guardanapo, você não joga mais fora. É como se começasse uma vida espiritual com as palavras.

Se você pudesse mandar uma mensagem em um guardanapo para o Fabrício de 30 anos atrás, que estava ingressando no curso de jornalismo, o que estaria escrito?

Você vai perder os seus cabelos (risos).

E para o Fabrício que está 30 anos no futuro?

Os cabelos não fazem nenhuma diferença (risos).

CARLOS REDEL


23 DE OUTUBRO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

COVID NAS CRIANÇAS

As crianças foram relativamente poupadas das formas mais graves da covid. Em seu último número, a revista Nature tenta explicar esse fenômeno.

Parece contraditória essa característica, uma vez que as crianças vivem com o nariz escorrendo, infectadas pelo primeiro vírus respiratório que aparece na escola. A facilidade em contrair resfriados de repetição é atribuída à falta de experiência do sistema imunológico infantil para lidar com mais de 200 vírus causadores de resfriado, entre os quais há outros coronavírus.

Nós, adultos, contamos com a experiência de um sistema imunológico que já entrou em contato com diversos agentes virais, foi capaz de eliminá-los e de guardar suas especificidades moleculares na memória para atacá-los, com muito mais eficiência, num segundo encontro.

Estudos recentes demonstram que as razões pelas quais as crianças parecem defender-se melhor do Sars-CoV-2 guardam relação com a imunidade inata, aquela geneticamente intrínseca à própria constituição do sistema imunológico, pronta a ser mobilizada contra qualquer microrganismo invasor, ainda que não exista experiência prévia.

Nas primeiras fases da vida, esse braço da resposta é o que assegura nossa sobrevivência num mundo povoado por bactérias, fungos e vírus. Se fôssemos depender exclusivamente da produção de anticorpos e da resposta imune celular, passos que demandam pelo menos alguns dias, infecções banais teriam colocado nossa vida em risco na mais tenra idade.

Como explicar que as crianças sejam mais eficientes do que os adultos para eliminar o Sars-CoV-2?

No início da pandemia, pensávamos que a probabilidade de adquirir a infeção era menor entre elas. Embora aquelas com menos de 10 anos tenham risco um pouco mais baixo de fato, as demais correm risco semelhante ao dos mais velhos.

Neste momento, a Academia Americana de Pediatria estima que 15% dos casos nos Estados Unidos ocorram em menores de 21 anos, número que corresponde a cerca de 5 milhões de americanos.

Na Índia, um inquérito que testou a presença de anticorpos contra o coronavírus na população, revelou que dois terços dos indianos já haviam sido infectados. Naqueles entre seis e 17 anos, mais da metade apresentava anticorpos.

A primeira explicação para a resistência das crianças foi a de que o vírus não conseguiria se replicar nas fossas nasais e nas vias aéreas com a facilidade com que o faz nos adultos. Publicações posteriores, no entanto, demostraram que a carga viral nessas áreas é semelhante à dos adultos, principalmente nas fases iniciais infecção.

A disseminação da epidemia nos Estados Unidos e em outras partes do mundo mostra que a participação das crianças no pool de pessoas infectadas e hospitalizadas está aumentando. Esse fenômeno pode ser explicado pelo aparecimento da variante Delta e pelo fato de que a proporção de adultos vacinados é bem mais alta.

Em relação aos adultos infectados, pacientes pediátricos apresentam taxas mais baixas de anticorpos neutralizantes (imunidade humoral) e menor número de linfócitos T (imunidade celular) dirigidos contra o vírus. As crianças, entretanto, têm concentrações mais altas de interferon-gama e interleucina-17, proteínas que alertam a imunidade inata da chegada de um patógeno.

Crianças com defeitos imunológicos que afetam a produção de anticorpos e/ou de linfócitos T não desenvolvem quadros mais graves de covid-19. Os casos mais graves ocorrem justamente naquelas com imunidade inata defeituosa ou malformada.

Outros pesquisadores têm defendido que as diferenças mais importantes estariam na programação da resposta inflamatória contra o coronavírus, processo que envolve a produção de microcoágulos causadores de tromboses e embolias nos adultos. Como as crianças formam coágulos com mais dificuldade, ficariam protegidas.

Infelizmente, nem todas as crianças evoluem bem. Um estudo publicado como preprint mostrou que 14% de crianças e adolescentes com teste positivo para o Sars-CoV-2, queixam-se de sintomas múltiplos três meses depois do diagnóstico. E, cerca de três em cada 10 mil infectadas apresentam uma forma grave denominada síndrome inflamatória sistêmica, que se instala por volta de um mês depois da infecção inicial e provoca insuficiência cardíaca, dores abdominais e conjuntivite. O quadro pulmonar é mais limitado.

Felizmente, apesar dessas possíveis complicações, a evolução da doença é muito mais benigna nas crianças.

DRAUZIO VARELLA

23 DE OUTUBRO DE 2021
MONJA COEN

NÃO EXISTE TERRA FIRME

Era Almirante da amada Armada. Navegava por mares nunca dantes navegados. Já vivera tantas eras que não se lembrava mais quando nascera, nem onde. Era Almirante e de branco reluzente ficava às noites brilhando tanto quando a lua cheia.

Lua tem fases e faces. Redonda, vazia, pela metade e aos pouquinhos. Lua de três dias, lua de fazer pedido. Quarto crescente, quarto minguante. Lua nova - vazia de si mesma. Como o vazio do zen.

Sempre em transformação, dependendo da situação. A narrativa da lua varia. No Japão, nela habita um coelho grandão que amassa o arroz cozido, deixando-o uma pasta. Elegia ao trabalho. Aqui no Brasil, está São Jorge matando o dragão.

No Japão, o dragão é legal, não é mal. Dragão é símbolo das águas, embora solte labaredas pela boca e voe pelo céu da nossa imaginação. Por que São Jorge, protetor de um time de futebol de São Paulo, haveria de matar, ferir, acabar com o imaginário dragão? Feras estranhas povoam as mentes humanas.

O Almirante, na proa do barco, via a lua refletida nas águas. Luz infinita, como o nome do Buda Amitaba. Havia aprendido nomes de Budas nas suas viagens ao Oriente. Se não fosse pela bússola, talvez nem se lembrasse se ele mesmo era ocidental ou oriental. Nunca se olhava no espelho. Há muito perdera sua face.

O céu estrelado. O anel em volta da lua declarava um compromisso formal. Seria casamento, aliança inquebrantável? Ou o anúncio natural de que chuva estava a caminho?

Afinal, o Almirante, embora fizesse poesia, era um homem sério. Solteiro, pois se casara na verdade com a Armada. Barcos, navios, submarinos, jangadas. Amava o mar e o movimento que o deixava sempre com os joelhos semiflexionados. Mesmo em terra firme.

Há terra firme, gente? O que significa o vulcão lá nas Canárias despejando fogo e lava? Estamos na camadinha fininha de uma bola em brasa. Tudo se movimentando, tudo vivo, sem a menor estabilidade, como os navios pequenos, os barquinhos e mesmo os maiores navios à mercê das ondas, dos icebergs, das rochas, das chegadas, das partidas, dos desastres, dos desaparecimentos e da doçura de morrer no mar.

Nunca saber o que irá acontecer. Cada instante um novo instante. Parece até história de monge zen. O Almirante amava a Armada sem esperar que ela correspondesse. Era amor de criança, dos barquinhos de papel que seu avô dobrava com o jornal já lido. Sonhava, viajava. Foram tantas idas e vindas, tantas viagens no tempo e no espaço que o Almirante às vezes duvidava se vivia na Terra ou na Lua.

Branco como a espuma que o acariciava na praia. Inerte, foi levado pela maré. O Almirante ficou gorducho, com a barriga inchada de tanta água salgada. Um pajé o viu naufragado. Fez reza, fogueira e assado. Espremeu sua barriga, tirou a farda branca e molhada. Nu, sem barco, sem lua, sem nada, o Almirante acordou e percebeu que sua amada havia armado uma cilada. Sorriu e ninguém nunca mais o viu.

No céu, a lua brilhava - cada dia de um jeito, cada hora com um formato, sem jamais se repetir. O mar virou lagoa, coberta de estrelas prateadas.

Uma história sem moral, apenas para contar que em nossa face se revelam as fases da vida. E somos todo o passado da humanidade e todo o futuro também. Entretanto, só percebemos este instante, este momento e nele toda a alegria e todo o tormento.

Só há uma solução: desarmar a amada e tomá-la em seus braços para que nunca mais arme uma cilada. Tornar-se uno com o Todo. Que a paz prevaleça na Terra. Mãe amada... Desalmada? Mãos em prece

MONJA COEN

23 DE OUTUBRO DE 2021
J.J. CAMARGO

VIVER NUNCA É O BASTANTE

Ainda que viver mais não tenha, que se saiba, compromisso com viver melhor, esta é meta mais pleiteada. Se será bom ou não a gente verá depois. Alguns muito velhos admitem que não foi uma ideia boa ultrapassar a média, e na minha experiência esta queixa está, geralmente, relacionada à irrealização dos projetos da prole.

Deixando de lado esse grupo de desencantados, a maioria festeja a perspectiva de envelhecer, muitas vezes sem nenhuma noção das perdas que virão associadas à decrepitude.

A ideia desta crônica é esquecer esses eventuais rabugentos da terceira idade em diante e fixar-nos naqueles que não viveram tanto para enfastiar e se sentem ameaçados de morte por alguma doença extemporânea.

Para esses, cada fatia de vida ampliada, não importa a que custo, é festejada com euforia - e entre os bem amados o tempo extra reconquistado nunca será suficiente.

Quem trabalha com transplante convive com essa população selecionada pela reciprocidade do afeto, que encanta e justifica a vida, porque eles têm amor para dar e amor para receber.

No arquivo da Secção de Cirurgia da Academia Nacional de Medicina, está guardada a história de uma mulher de 30 anos, de Manaus, operada pelo Fabio Jatene, que representa esse modelo perfeito da vontade de viver, sempre pela mais nobre das razões: o amor dos seus.

Portadora de um tumor extremamente agressivo e situado ente estruturas vitais do tórax, ela expressou, ao ser informada da indicação cirúrgica, uma confiança absoluta, este sentimento que coloca o cirurgião no seio da família, com tudo o que ele tenha de recursos técnicos, acrescido do peso da responsabilidade, pois todos dependem dele. Quem já viveu esta situação sabe de que peso estou falando.

Antes da primeira cirurgia, ancorada no amor dos pais, o apelo foi que ela precisava muito viver para criar seus filhos pequenos. Nos 18 anos que se seguiram, vitimada pela tendência desse tumor de recidivar em diferentes órgãos, ela foi operada seis vezes, sempre voltando à vida útil entre os seus amados.

Quando internou para a sexta operação, quase duas décadas tinham se passado, os filhos haviam crescido, estavam formados, e um neto agora alegrava a família. Às vésperas da operação, o Fábio foi visitá-la. O trio inseparável lá estava. Mais velhos, mais desgastados pelas idas e vindas do destino e pela doença. Mas a confiança seguia intacta, apesar dos tempos difíceis.

"Mais uma vez, meu querido doutor", disse ela. "Estou cansada! Foram tantas operações e elas estão se tornando cada vez mais difíceis. Estou com medo de numa hora dessas não resistir."

E aí ela disse algo que relembrou o início de tudo, 18 anos atrás, e que mostrou que não há limites para a fé e para a esperança de alguém. E o Fabio Jatene, um gigante de coração mole, encheu o olho para anunciar o último pedido: "Queria apenas um pouco mais de tempo por aqui. Queria muito poder ver meus netos crescerem!".

J.J. CAMARGO

23 DE OUTUBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Os mais ferozes entre os leões

Você já ouviu falar nos terríveis Leões Mapogos? Os Leões Mapogos eram uma coalizão de seis leões machos que viviam na reserva de Sabi Sands, na África do Sul. Eram cinco irmãos e um estranho que veio não se sabe de onde, não se sabe por quê. Atingiram um nível de brutalidade e de crueldade jamais visto no mundo animal. Para conquistar território, matavam leões machos e seus filhotes, e tomavam o bando de fêmeas. Se as fêmeas não se submetessem, matavam-nas também.

O objetivo dos Mapogos era formar uma grande descendência, por isso matavam os filhotes alheios - quando o filhote morre, a leoa mãe entra no cio novamente. Assim, os Mapogos asseguravam que todos os filhotes do território fossem seus e não de outros leões mais fracos. Os cientistas da reserva calculam que eles mataram mais de cem leões, leoas e filhotes.

Se fossem pessoas, os Mapogos seriam Gengis Khan, que teve centenas de filhos, tem mais de um milhão de descendentes e vivia repetindo:

- A felicidade do homem é vencer o inimigo, pô-lo de joelhos a sua frente, cavalgar seus cavalos e violar suas mulheres e filhas.

Só que com todos os homens e bichos acontece o mesmo: se eles ficam vivos por muito tempo, acabam envelhecendo. Gengis Khan, ao chegar aos 65 anos, não suportou os efeitos de uma bebedeira e morreu em sua tenda mongol. Já a média de vida de um leão na selva é menor: cerca de 12 anos. Os Mapogos alcançaram essa idade e, assim, se tornaram um bando de velhinhos. Leões, sim, mas velhinhos. Isso encorajou um bando de leões jovens e arrojados a atacá-los e lhes tomar territórios e leoas. Alguns Mapogos morreram em combate, outros foram embora com o rabo entre as pernas e sumiram sem jamais voltar a dar notícia.

O que significa toda essa história animal? Que não há paz na natureza nem para o majestoso leão, aquele que os humanos nomearam O Rei da Selva. Até os invencíveis Mapogos um dia foram vencidos. Ou seja: os momentos de paz e tranquilidade têm de ser sorvidos até o último segundo.

Um pátio ensolarado com uma rede pendurada entre duas árvores. Uma noite de frio que você passa em frente à lareira acesa ou de chuva que você passa entre os cobertores da sua cama confortável. As gargalhadas dos amigos na mesa do bar. O sorriso da mulher amada. O beijo do filho.

Esses pequenos momentos em que não há glória nem tragédia, em que o dia escorre devagar e suavemente, em que há concordância entre os seres humanos, esses pequenos momentos devem ser bebidos como se fossem o néctar da vida. E são. Na verdade, são.

DAVID COIMBRA

23 DE OUTUBRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

A GARGALHADA

A CPI do Senado sobre a pandemia transformou-se em magistral aula de Direito Criminal. Todos os crimes possíveis (até os inimagináveis) ali aparecem, perpetrados por diferentes órgãos e escalões do governo central ou por indivíduos ligados a ele. Foi como, se em medicina, todas as enfermidades (do simples resfriado ao câncer) se reunissem num mesmo enfermo, facilitando assim descobrir as inter-relações de causa e efeito.

Pela primeira vez na história do Brasil, um presidente da República acabou acusado por "crimes contra a humanidade" ou responsável direto por omissões e atos que levaram à morte milhares de cidadãos ou deixaram terríveis sequelas nos sobreviventes. Nos meus anos em Brasília, presenciei a marcha de diferentes comissões parlamentares de inquérito que, no entanto, se desenvolviam burocraticamente, mesmo investigando com seriedade, mas sem que revelassem a desfaçatez dos implicados.

Agora foi diferente. Bastava assistir aos depoimentos pela TV ou acompanhá-los pela imprensa para conhecer a dimensão dos crimes e seus autores diretos ou indiretos. Por exemplo, os depoimentos do insuspeito deputado bolsonarista Luís Miranda e do seu irmão, funcionário do Ministério da Saúde, mostraram que o presidente conhecia a bilionária corrupção armada para comprar a vacina indiana.

O relatório final da CPI sobre a covid-19 indicia 66 pessoas pela disseminação da pandemia, entre elas o presidente Bolsonaro e seus três filhos parlamentares. Este número amplo mostra como a ideia de negar o perigo se infiltrou no governo, a partir da prole presidencial. O alto número de indiciados tem, também, o lado mau de diluir entre muitas dezenas as culpas ou responsabilidades concentradas no alto escalão do governo.

Bolsonaro diz que as conclusões do relatório "propagam o ódio", mas não questionou qualquer fato apontado. Nada, porém, supera o cinismo da gargalhada do senador Flávio Bolsonaro na TV, ao imitar o que faria o pai, Jair, quando lesse o relatório da CPI. Ou a gargalhada não ecoou como deboche aos mortos e sequelados?

A gargalhada reproduzida na TV era o oposto do sorriso terno que conforta e acalma. Tinha tom forçado de falsa ironia, num momento em que a morte, a doença e o horror exigem ser enfrentados com seriedade.

Resta agora esperar que as conclusões da CPI se transformem em algo concreto e objetivo, punindo a quem deva ser punido. Só assim, gargalhar no Palácio do Planalto não será trágico.

FLÁVIO TAVARES

23 DE OUTUBRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

POPULISMO E INTERESSES ELEITOREIROS

Se ainda havia alguma dúvida, não há mais. As forças que comandam o país em Brasília têm apenas uma motivação. Lamentavelmente, não é a construção de um projeto de nação próspera e moderna. O grande impulso do governo federal e de seus aliados do centrão, na Câmara e na Esplanada dos Ministérios, é a própria sobrevivência eleitoral e a busca obstinada por evitar os riscos de não terem mais, a partir de 2023, a proteção dos cargos que ocupam. Em nome de interesses particulares de um pequeno grupo, no entanto, arrisca-se jogar o Brasil em uma espiral nefasta de deterioração fiscal e desconfiança crescente que levará à manutenção de inflação elevada, juros altos e economia claudicante. O que é feito alegadamente para proteger as camadas mais baixas terá, como efeito colateral, danos que afetam principalmente esse mesmo estrato da sociedade, mas são pagos por todos os brasileiros.

O Palácio do Planalto e apoiadores no parlamento justificam as artimanhas para driblar o teto de gastos e os preceitos da responsabilidade fiscal com a premência de criar um programa de transferência de renda robusto para socorrer dezenas de milhões de pessoas afetadas pelo desemprego persistente, pela escalada dos preços e o aumento da miséria. Sem dúvida, existe essa necessidade, ainda mais devido ao fim próximo do auxílio emergencial, neste mês. Ocorre que há mais de um ano o governo fala sobre a criação do chamado Auxílio Brasil, mas por inépcia e desarticulação política não consegue encontrar uma fonte de custeio para a iniciativa. Agora, agarra-se à urgência do calendário para detonar o mecanismo que era a garantia de que não haveria descontrole fiscal.

Melhor fariam o governo e seus aliados se cortassem ou diminuíssem gastos não prioritários neste momento de escassez de recursos, como as fartas emendas parlamentares ou o fundo eleitoral. Ou então se tivessem entregue as privatizações eternamente prometidas, assegurando receitas extras. Ou, ainda, se mostrassem empenho em levar adiante versões consistentes das reformas administrativa e tributária, racionalizando despesas e garantindo maior competitividade à economia brasileira. A característica do governo, no entanto, é de fugir de decisões difíceis, ainda mais se significar indispor-se com a base de sustentação e existir risco de perda ainda maior de popularidade.

A mudança na fórmula para calcular o teto de gastos, incorporada na PEC dos precatórios, para limitar o pagamento de dívidas judiciais, é apenas uma gambiarra para justificar a implosão da principal âncora fiscal do país. Ao fim, calcula-se que os dois artifícios abrirão R$ 83 bilhões de espaço no orçamento. Parte pode ser capturada para uma turbinada adicional nas emendas parlamentares, o que fragiliza ainda mais a explicação de que a "licença", como disse candidamente o ministro Paulo Guedes, seria para amparar os mais pobres. Há ainda a promessa de Bolsonaro de socorrer caminhoneiros com uma bolsa de R$ 400, sem especificar de onde sairiam os recursos.

Somados, são episódios que escancaram o fim da ilusão de um governo liberal. Recorreu-se ao velho populismo movido por interesses eleitoreiros. Os reflexos imediatos apareceram no estresse do mercado financeiro, além da debandada de quatro secretários do Ministério da Economia, contrariados com o abandono da austeridade. Ficou claro que, na queda de braço interna, venceram o centrão e a ala política. Fórmulas que sempre deram errado tendem a seguir produzindo desastres. E a conta, como mostra a História, será apresentada à população.

 


23 DE OUTUBRO DE 2021
UM NORTE PARA O ESTADO

Saída é "repensar a educação"

Especialistas afirmam que a saída é "repensar a educação" para diminuir o abismo entre a oferta de mão de obra sem qualificação e a demanda no mercado de trabalho. A fórmula? Unir esforços entre o poder público e o setor produtivo.

Conforme o diretor de Educação da Federasul, Fernando de Paula, cada vez mais as empresas terão de levar iniciativas de preparação para além dos próprios muros. Na outra ponta, o governador Eduardo Leite diz que o papel do Estado é oferecer, no ensino regular ou em cursos, formações mais condizentes com as demandas da economia.

- Por isso, temos cada vez mais o reforço de professores de matemática para aumentar a capacidade de raciocínio lógico. O poder público deve estar alinhado para que a formação venha na direção do que o mercado de trabalho vai exigir - afirma o governador.

Em 2022, lembra Leite, entra em vigor o novo Ensino Médio. A ideia é corrigir, em parte, o problema com a ampliação das atuais 800 horas-aula/ano para mil. Com a carga horária acrescida, estudantes optarão por cursos técnicos e de qualificação.

Disparidade

Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, só 10,5% dos estudantes de Ensino Médio brasileiros fazem algum tipo de curso técnico. A média dos 38 países desenvolvidos signatários da entidade fica em 42,2%. No Brasil, diz Carlos Trein, diretor do Senai-RS, há prevalência pelos cursos superiores.

- Não jogo contra a graduação, mas fica evidente que existe desequilíbrio entre o que se vê em países desenvolvidos e o que praticamos aqui. Enquanto nesses paí­ses existem mais pessoas inseridas no mercado de trabalho, aqui, para cada um aluno que faz curso profissional existem seis que preferem a graduação. Isso atrasa a formação técnica, retarda o ingresso no mercado de trabalho e provoca essa grande falta de profissionais - argumenta Trein.

O dilema do setor industrial

O mundo passa por transição para a chamada indústria 4.0. Com a meta de aumentar a eficiência e reduzir custos, as novas tecnologias digitais devem flexibilizar as linhas de produção.

Por isso, é comum ouvir falar em onda de desemprego no segmento. No entanto, executivos e industriais afirmam o oposto, ainda que a adaptação traga para o chão de fábrica o mesmo dilema enfrentado na tecnologia da informação: investir em tecnologias, sem profissionais para operá-las.

Conforme a Confederação Nacional da Indústria (CNI), sete em cada 10 indústrias já investem em tecnologia 4.0 no país. Todas relatam - ao contrário do senso comum - que a implantação dos modelos demandou contratações.

No Rio Grande de Sul, por exemplo, a indústria geral empregava mais de 1 milhão em 2012. Hoje, são apenas 768 mil ocupações. Entre as empresas, 96% reportaram dificuldade para contratar operadores e 90% tiveram problemas para encontrar técnicos de nível médio. A mesma base aponta que 97% afirmam que isso afeta a produtividade e a qualidade do produto.

Na CMPC, gigante do setor de celulose, por exemplo, tecnologia e automação industrial trazem desafios. No que se refere à indústria 4.0, para se ter uma ideia, a empresa mapeou 1,3 mil cursos de softwares necessários para fazer a transição dos profissionais para a nova realidade da fábrica.

Diversidade

Na Gerdau, a diretora global de pessoas e responsabilidade social, Caroline Carpenedo, explica que a resolução do problema está além das empresas, mas diz que elas têm papel fundamental na preparação de colaboradores.

A saída, avalia, é antecipar estratégias e soluções. Por isso, há uma série de programas como o G-Start (estágios), G-Future (trainees), G-Lide (posições de liderança), G-Makers (inovação) e G-Data (cientistas de dados).

A partir de 2017, a companhia abriu o leque para trazer mais diversidade e criou programas para equilibrar raça e gênero. Um deles elevou a posição de mulheres em cargos de liderança. Batizada de projeto Helda, a ação ampliou de 17% para 23% a participação feminina nos postos de chefia. A meta é chegar a 30% em 2025. O parâmetro é um dos itens que formam o plano de remuneração variável dos colaboradores.

Mãe do Miguel, de dois anos, Paloma Pasqualina Colombo é a nova gerente jurídica trabalhista da empresa. Ela é uma das 27 integrantes da primeira turma do Helda e já passou por duas ascensões profissionais. Há quatro anos, durante seleção, relatou na entrevista que gostaria de ser mãe. A resposta recebida foi: "Aqui, nós adoramos crianças".

- Naquele momento, soube que estava no lugar certo - diz.

Recentemente, também foram criados e ampliados programas para contratação de pessoas com deficiência e para o público LGBT+. Além disso, em outubro, a Gerdau lançou o projeto de longevidade para trabalhadores acima dos 50 anos.

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